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2 Contos: “CULPADO OU INOCENTE?” e “Castigo de Deus”


The Angel bronze, 2017, de Benjamin Victor - Foto Christine Dannenberger

Conto “CULPADO OU INOCENTE?”

O carnaval mal tinha acabado e ela era bombardeada pelas manchetes, na TV. Tudo de péssimo continuava lá: Israel estava surda como uma porta, presa a seus interesses escusos, Putin continuava sendo Putin, Lula discursou no Egito, na Etiópia e Maduro merecia um chute.

- Será que os homens precisam que a idade avance para amadurecerem ao menos um pouquinho?

Culpado ou inocente? Ainda rolava essa dúvida?

Pior que sim.

Tanta gente havia morrido, tantas pessoas e coisas foram abandonadas sem a mínima preocupação ou reforma, sem o mínimo upgrade, à espera que algo acontecesse para culpar “o último a segurar o rabo de foguete”.

- Regime de força é isso... Você olha pra um lado e lá está o Maduro expulsando a ONU, o Putin “sem saber o que pode ter acontecido com o Alexei Navalny” e o nosso ex (todo ex é problemático, já reparou?), dizendo que embora tenha falado, respirado, pedido, convencido, discursado e combinado sobre como um golpe de estado por aqui era necessário, não fez nada porque não houve golpe de estado.

- Isso engana alguém? Mas se o golpe tivesse nos convertido numa ditadura, quem iria prender o golpista, se ele tivesse se transformado no novo governo? Quem toca no Putin? Todo mundo morre, de mortes estranhas e nunca explicadas! Ou podemos pensar menor, bem menor: quem toca no marido abusivo, que é violento em casa com a mulher e os filhos? Quanto tempo uma mulher leva para colocar uma roupa e ir na delegacia especializada dar queixa? Quanto tempo uma criança espancada leva para procurar socorro em algum lugar? Quanto tempo a sua professora leva para se meter com o pai abusivo e denunciá-lo?

- Esse é o problema dos regimes de força. Ninguém quer se meter com eles porque afinal, ninguém quer se encrencar. Me lembro muito bem que, quando jovem, minha mãe me dizia, antes que eu saísse de casa, para repetir sempre que não sabia de nada. Não falava “cuidado ao atravessar”, mas: “sempre repita que não sabe de nada, não viu nada”.

Regime: Ditatorial militar, nascido do golpe de 1964. Presidente: Emílio Garrastazu Médici. O carniceiro Médici.

- Se houve meia tentativa de golpe de estado, investiguem, julguem e prendam.  Porque o mundo é pior sem o bom humor, a ironia de Alexei Navalny, sem suas imitações de Putin, sem liberdade e democracia, sem Maria Corina Machado – única mulher com coragem para enfrentar Maduro nas urnas – e seria muito mais pobre sem nós, sem nosso humor e desfiles de carnaval – nós que ignoramos a ideia de golpe e votamos na democracia.

Há uma romântica e longínqua homenagem ao Navalny que pode vir da nossa exigência em investigar, julgar e – se condenados – punir a todos os golpistas.

Olhou a TV. Crimes por todos os lados pelo mundo. Ela dedicou um bom pensamento – quase uma prece – para Navalny, desligou a TV, deu aquele muxoxo desanimado e seguiu a vida. Um herói a menos, num mundo com déspotas demais...

- Tsc, tsc, tsc... Fazer o quê?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Castigo de Deus”

Aprendeu que a justiça para todos devia ser uma luta diária e algo que só quando acontecesse é que a humanidade descansaria. E considerava-se uma pessoa de bem, correta, educada e bondosa com as pessoas.

Talvez o mundo nunca tivesse sido assim. Talvez fosse tudo ao contrário. Mas ela guarda em si a sensação que quando era jovem essa justiça existia. Que foi quando cresceu que descobriu que o mundo também era injusto. Afinal todo o dinheiro, fazendas, produção de café, riqueza, luxos, eram merecidos na sua família e na sua vida. Seu pai trabalhava muito, controlando a pulso firme aqueles homens preguiçosos. Via e aprendeu que a justiça se obtinha com rigidez, secura, frieza, poucas palavras, nunca recuar numa decisão. Sempre achou tudo aquilo em sua volta normal, justo, como devia ser o mundo afinal. Quando cresceu com essas descobertas sobre a injustiça do mundo ficou muito confusa. Como aquela gente tentava se revoltar sabendo que o chicote iria ser a resposta? Como aquelas pessoas não entendiam o bom que seu pai era na vida deles? Não teriam nada de outra forma. Um dia ouviu gritos e frases de um homem que estava sendo castigado, que guardou para sempre e que a deixou muito triste. Como aquele homem foi capaz de dizer aquilo? Que injustiça insinuar que era sua família e não os trabalhadores que não teriam nada se eles não trabalhassem para o seu pai. Nesses momentos, nessas fases em que seu pai via que ela estava triste com essa falta de agradecimento dessas pessoas – pensava ela – seu pai sempre vinha com umas viagens pela Europa para ela ficar alegre. Estranhava que quando voltava essas pessoas que provocavam desacatos, já não estavam, mas gastava tanto tempo bordando, lendo, pintando que nunca perguntava para onde foram essas pessoas. Provavelmente, pensava, pediram para sair para outros trabalhos.

Agora, já bem velhinha, se pergunta como pôde não ver, como pôde? Estava tudo ali na sua frente, mas ela só via a justiça, a bondade, a gentileza, o amor, a amizade, o bem estar, o dinheiro, a segurança, a comodidade, a alegria, a felicidade - dela. Ela só via isso ou ela nunca quis dar importância? Ou ela quis sempre ver apenas o que lhe convinha?

O Oftalmologista insiste que na sua frente ela tem um A a seguir a um T, mas ela não vê. O médico insiste, mas não é capaz. Desta vez, finalmente, desta vez, ela realmente não vê. Das outras vezes ela se distraía com as coisas que queria ver, ou recusava dar importância ao que não queria aceitar, ver, lidar. Mas desta vez a vida lhe estava sendo bem direta. Não era mais a diferença entre patrão e empregado, entre ela que tinha tudo e os que não tinham nada. Estava cegando. Estava cegando e aquele homem na sua frente, o maior especialista do mundo, não tinha solução. Tanto dinheiro e não conseguia resolver. Desta vez ia deixar de ver o que nunca quis ver, mas também o que escolhia ver. Estava em choque. Como isso acontecia com ela? Quando era jovem ouvia as velhotas da Igreja dizerem que essas coisas eram castigos de Deus, era o universo trazendo a “conta” de tudo o que ela podia ter feito e nunca quis fazer. Será? Será possível? Está bem velhinha e tem medo que isso seja verdade. E se pergunta porque nunca quis ajudar a afilhada que vivia do seu lado passando tantas dificuldades. Se pergunta porque sempre se riu da cunhada pobre que nunca tinha uma roupa que ela gostasse. Se pergunta porque educou de forma demasiado disciplinada e ríspida os filhos e afinal eles se transformaram em pessoas inseguras e dependentes do seu dinheiro, incapazes de a enfrentar e ter capacidade de tomar decisões e realizar obras fundamentais para a humanidade. Se pergunta porque para si era normal as coisas boas serem sempre suas. Se pergunta porque nunca achou estranho ela ter sempre razão.

Talvez seja o momento de tentar ser o que nunca foi ou continuar a mesma caminhada. Afinal cega vai precisar de muitos empregados e para eles fazerem tudo o que quer, talvez a forma rígida, seca, fria, de poucas palavras, e de nunca recuar numa decisão do seu pai, lhe seja útil. Ou, antes de chegar ao fim do caminho, tentar corrigir, mudar algo em si e na sua forma de ver e tratar os outros. Tem um menino que todos os dias toca na sua porta pedindo latas vazias e água. Como não bebe, sempre lhe responde com agressividade. Mas pode começar por lhe dar a água e dizer que não tem latas vazias. E quem sabe até pedir desculpa por isso. Afinal, são essas latas que vão dar dinheiro aquele menino para comer. Ou dar 5 reais quando ele passa. O que são 5 reais para ela? Para ele é um dia sem fome.

Será que vai conseguir “abrir os olhos, agora que cegou?

Ana Santos, professora, jornalista

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