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2 Contos: “CARTEIRADA” e “Tudo...ou apenas abacate"


Joana Vasconcelos
Joana Vasconcelos

Conto “CARTEIRADA”

- Você sabe com quem está falando?

Era assim que começava a debandada geral. Infalível. Todos tinham medo daquele homem. Aquele olhar sisudo, de quem ganhava a vida fiscalizando se o que outros faziam era certo ou errado, como um julgador, um censor, um policial – autoridade seja lá do que fosse. Importante, claro. Pela forma de falar...

Nunca ninguém lhe pediu nenhum documento, Deus nos livre! E se ele se ofendesse? E se nos mandasse prender?

- Quem é você para tentar me cercear a entrada?

- Cercear... (Nossa, cada palavra ele dizia...)

- Impedir! Então ainda tenho que me traduzir? Saia logo da minha frente!

Conseguiu cargos. Era respeitadíssimo.

- Isso vai chegar à Brasília, está me ouvindo? Eu me relaciono – por baixo, assim – com pelo menos a metade do Congresso Nacional. Na- cio- nal, entendeu bem?

Um dia, num congestionamento, foi parado. Havia algo com a placa de seu carro.

- O senhor faça o favor de me passar seus documentos.

- Você sabe com quem está falando?

- Sei, perfeitamente. Com um motorista que está com problemas de visualização dos algarismos da placa do carro.

- Quem é você para tentar me cercear andar com o carro?

- Eu não estou impedindo nada, senhor. Sua documentação é que fez isso.

- Isso vai chegar à Brasília, está me ouvindo? Eu me relaciono – por baixo, assim – com pelo menos a metade do Congresso Nacional. Na- cio- nal, entendeu bem?

_ E eles não lhe informaram que se a placa estiver apagada o senhor precisa resolver a questão, ir ao DETRAN, ao invés de simplesmente continuar circulando com o carro irregular? E se o senhor se envolvesse num acidente? E se se evadisse do local?

- Evadisse...

- Sim, meu senhor, fugisse, se picasse!

E assim, a quase excelência foi multada como qualquer mortal, mesmo sendo conhecida por metade do Congresso Nacional. Na-cio-nal!

Num País onde, mesmo sem conhecer ninguém no Congresso Na-cio-nal as pessoas sonhavam no seu dia de “carteirada”, Agenor, que cochilava à sombra das árvores, naquele super calorão de Salvador, abriu um olho, depois o outro e depois os fechou desiludido:

- Pô, tava na maior animação, rapá... Como aquele guarda foi aparecer pra me estragar a raça?

É... Era sonho...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Tudo...ou apenas abacate"

Os meus amigos são encantadores. Penso neles enquanto caminho em direção à praia.

O Erik, vende abacate no sinal. Não consigo que aquele homem sorria com as coisas da vida. Só lhe vejo os dentes quando vende. Talvez eu me sinta mais amiga dele do que ele de mim, afinal nunca me mostra os dentes pois eu mal tenho dinheiro para pagar as minhas contas, como eu iria pagar um luxo verde e delicioso daqueles? Sei que somos amigos mas nunca o dissemos. Temos momentos que nos fazem bem. E chega.

A Laurinha canta. Uma mulherona daquelas, com tanta palavra saindo de sua boca nos seus shows, não fala nada quando estamos juntas. Olha, sorri, come, abraça. Um “Olá” na chegada e um “Tchau” na saída. É ela. Gosto dela assim.

Laranjinha é meu amigo mais falador. Somos duas dragas de palavras quando estamos juntos. Talvez por isso os outros nem falem – a gente não deixa nem aparecer o silêncio. Eu e Laranjinha tivemos um problema grave juntos e que aconteceu no mais completo silêncio. Acho de nunca mais conseguimos estar sem algum som, alguém falando, quando estamos com outras pessoas. Dois traumatizados, amigos de morrer. Risos, palavras, gritos, é esse o ambiente quando estamos juntos. Desgraçados dos que ficam por perto – tanto os que desejam falar, como os que desejam sossego.

O Joca ficou cego em adulto mas eu caio mais vezes do que ele, e vejo dos dois olhos. Não entendo como isso acontece. Quer dizer, entendo. Eu sou uma descoordenada tremenda, tomo demasiados drinques quando saio, fico sempre de óculos para ninguém me reconhecer e uso uns sapatos de 30 centímetros de tacão. Neste chão de Salvador, isso é pedir para cair. Quando chove tudo piora, fico mais tempo no chão do que a pé. O Joca é um cara legal, direito, não bebe, tem seu cachorro, sua bengala, seu equilíbrio interior. Todas as vezes que estamos juntos me fala a mesma coisa. Tenta me convencer a ser mais atinada, mais pé no chão, em me tratar melhor. Eu agradeço as palavras gentis que sempre me diz, mas eu nem sei o que é preciso fazer para ser alguém direito, como ele diz. Como será? Talvez dê muito trabalho, e eu para trabalhar ainda não estou preparada. Talvez na próxima vida.

Minha mãe não gosta dos meus amigos. Acha todos uns horrores, não deixa eles irem na nossa casa. Mima-me com comida, não se importa que eu beba e me incentiva a ter vários namorados ao mesmo tempo. Quer que eu ganhe experiência antes de casar, quer que eu curta a vida antes de me dedicar a fundo ao trabalho. Eu aproveito, agradeço, trato-a bem. Ela é saudável, tem um emprego bom e estável,  portanto, vou manter esta vida por uns bons e longos anos. Ela não se vai importar, desde que não leve meus amigos em casa. Fácil. E, quem sabe, lá para os meus 60 anos ela morra e eu fique com sua casa, suas contas e viva o resto da vida do mesmo jeito.

Cheguei na praia. Ansiosa por um banho e uma cerveja. Uma, mais outra e outra. Observo o povo comendo amendoim, tomando seus banhos, tomando suas cervejas. A vida pode ser melhor do que isto? Obrigada Meu Deus....

- Dona Ana?

- Sim?

- É a Dona Ana?

- Sou

- Não se importa de nos acompanhar?

- E qual seria a razão?

- Lamentamos informar que houve uma explosão na sua casa. Ficou toda destruída. Sua mãe estava dentro. A encontramos sem vida. Uma vizinha chamou o seguro, mas fomos informados que caducou. Precisamos que venha para iniciar toda a burocracia. Sei que não é fácil ouvir e saber de tudo isto, mas vamos consigo e ajudaremos no possível.

Nunca mais ninguém me viu na praia, nem bebendo, nem caminhando com meus sapatos de 30 centímetros. Passei a ser vista a partir desse dia do lado de Erik, vendendo abacate. Perdi tudo junto com a morte de minha mãe e a destruição da nossa casa, mas passei a sorrir frequentemente sempre que comia um abacate.

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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