2 Contos: “CARTAS NA MESA” e “Tentando se adaptar”
- portalbuglatino
- 25 de jan.
- 3 min de leitura

Conto “CARTAS NA MESA”
Quando “engolir” falas ofensivas deixa de ser uma opção? Quando apontar claramente que não se pode dizer qualquer coisa que venha à cabeça passa a ser sua obrigação como pessoa e como família? Mesmo que lhe custe seu lugar nessa “suposta família”?
Ela acordou de madrugada com essas perguntas na cabeça. Não se arrependia de nenhuma palavra. Colocou em cada palavra 20 anos onde, um amor em comum fazia com que fosse importante relevar toda a cena em perspectiva, mas não se enganava acerca dos inúmeros momentos de dor que sofreu e viu a quem amava sofrer também.
Todos os que pertenciam aquele mundo, obrigatoriamente tinham passado por momentos repetidos. Reprises de bullying. Ela não foi a primeira. As histórias se sucediam.
A criança cresceu e o amor teve que amadurecer. Apenas fechar os olhos em nome da ideia dessa proteção tinha cada vez menos sentido – até ético.
E o dia onde as palavras aprisionadas arrebentaram as comportas chegou – e foi tanta dor... tanta, tanta que tudo parece ter sido esvaziado, junto com o batimento cardíaco explosivo, os lábios azulados e a palavras que afluíram como um rio caudaloso que inunda tudo. Como as enchentes de São Paulo. Ela inundou aquele momento com todas as palavras que estiveram por ali como nuvens de chuva se juntando, clamando para saírem por anos. E o silêncio que veio em seguida, foi... pacificador.
Não dormiu. Apagou. Muito cedo, antes das nove da noite, como as crianças que simplesmente desligam suas luzes. De repente. Mesmo quando acordou, no meio da madrugada, a sensação era de silêncio de alma. Nada mais a dizer. Que alívio.
Não sabia o que ia acontecer, mas a liberdade deveria ter essa mesma sensação de nada, de plenitude, de esvaziamento.
Sorriu. Nem o enorme calor da cidade na madrugada a incomodava. Nada a incomodava porque sua alma havia falado.
Suspirou e se virou na cama. Poderia viver naquele mundo perfeitamente vazio o resto da vida...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Tentando se adaptar”
- Olha eu juro que não foi por mal. Estava contando os abutres sob minha cabeça.
- Realmente eram muitos, algo estranho no meio de uma cidade.
- É isso. Achei tão estranho que parei para os contar e comecei a ouvir pessoas falando. Julguei que era o porteiro do prédio falando com minhas vizinhas. Elas sempre fazem muitas perguntas sobre tudo.
- E não era?
- Cara, quando parei de contar – 12 abutres circulando naquele céu azul - e baixei a cabeça, percebi que estava do lado de um casal, dentro de um carro.
- Não tem nenhum mal isso.
- Sim eu sei. O problema é que eles estavam tendo uma DRT. Eu fiquei tão sem jeito que pedi desculpa e segui minha caminhada. Eu vinha ter com você.
- DRT?
- Sim, uma discussão entre um casal. Não é assim que vocês chamam quando um casal está conversando ou até discutindo sobre sua relação, algum comportamento ou regra que precisa ser falada, corrigida ou explicada?
- ahahahahahah
- Qual é a piada?
- ahahahahah
- Ai meu Deus, onde será que eu errei?
- DRT é o Documento de Registro Técnico. Por exemplo, você tem DRT de Jornalista. Entendeu? É um documento, uma habilitação para legalizar seu trabalho.
- ahahahahahah
- Viu? Por isso eu também ri. É muito engraçado... Você queria dizer que o casal estava tendo uma DR, não uma DRT. Captou minha mensagem?
- ahahahah...quando acho que já estou sabendo viver aqui, lá vou eu pela desgraça abaixo. ahahahahahahahahahahahahhahahahahah
- Pobre coitada, a portuguesa...quando será que ela virará uma baiana com sotaque? ahahahahah
Ana Santos, professora, jornalista
Comments