2 Contos: “BARANGA É VOCÊ!” e “Quem sou eu?”
- portalbuglatino
- 6 de set.
- 4 min de leitura

Conto “BARANGA É VOCÊ!”
À primeira vista, era estranha... Uma forma de falar grosseira, uma forma de ser brutalizada. Não porque tivesse hábitos masculinos, não. Apenas tinha uma forma indelicada de ser, de estar no mundo. Por qualquer coisa, lá vinham xingamentos, impropérios, palavrões, ofensas.
As pessoas ao seu redor, passaram a evitar assuntos.
- Política com ela? Deus me livre! Da última vez que discordamos, parecia que eu tinha ofendido a mãe dela, gente! Veio pra cima de mim, como se fosse um touro fugido!
- Ah, mas você não falou com ela sobre religião! Aí é que o bicho pega mesmo! Saiu blasfemando coisas contra mim, me dizendo que eu era filha do demônio! Por nada, juro!
E assim ia levando a vida, até que conheceu uma pessoa – igualzinha a ela. Machista daquele tipo reles. Se via alguém doente, imitava o sintoma da doença, ao invés de ser solidário. Alguém mais frágil? Fazia logo bullying – uma coisa assim meio parecida com o Trump conversando com o Zelenski. Podia-se dizer que tinha até técnica: Antes de tudo, humilhação. Se a pessoa calava, ofensas, negativas, exposições.
Passaram a namorar. Os dois juntos – meu Deus! – era de doer. Eram o fim da festa, a não festa, o não desejo de sair de casa.
Tinham, os dois, tudo em comum: a mesma religião, o meu partido político, o mesmo gosto musical. Usavam aquele verniz social - o mais tosco - para culparem, censurarem, transformarem tudo em preconceito.
Um belo dia, discordaram. Ela ergueu um totem para o seu mito e ele discordava de sua escolha. Queria outro, que tinha sido eleito governador do estado. Cá entre nós: os dois políticos mentiam, enganavam. Mas o casal só via seus mitos em ação.
Começaram as discussões, os gritos, os xingamentos, os desaforos, que logo passaram a agressões. Um repetia que não acreditava na justiça, a outra dizia que seu mito estava sendo perseguido. Os dois candidatos eram amigos, mas o casal, por causa do divórcio entre quem deveria ser idolatrado, foi destruindo a própria relação.
Ela passava por ele, aqui na rua, e logo dizia: “Lá vai o palhaço, o burro”. Vai se ferrar na eleição, mas não me ouve. Azar!
Ele a via comentando, desconfiava que falava dele e logo soltava: “Baranga”! Mulherzinha baixa!
- Quem fala!
- Falo mesmo!
E a coisa recomeçava toda de novo.
Passou na TV quando o “mito da Baranga” foi acusado de terrorismo, condenado e preso. Também assistiram quando o “governador da província do marido” foi acusado de desvio de dinheiro, julgado e condenado à perda do mandato. O vexame exposto na TV. As vergonhas expostas. Os vizinhos, ao invés de insultos, começaram a ironizar: “Que mito, hein”? “Mintchura”! – fingiam espirrar!
Deprimiram. Não saiam mais de casa. Andando do quarto para a sala, se olharam fixamente no corredor. Lágrimas nos olhos. Abraços, soluços. Vejam vocês: Saíram do quase divórcio, quase barraco. E voltaram. Ali, um consolando o outro. Enfrentaram as prisões dos seus ídolos. Amadureceram.
Baranga virou o nome da cachorrinha que adotaram e que tratavam com desvelo. As brigas acabaram. Passaram a andar de mãos dadas e a viver de mãos dadas com o mundo.
- Afinal a prisão deles... nos fez bem...
Foram felizes para sempre.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Quem sou eu?”
Morri. Depois de morrer, foi-me dada a oportunidade de ver como o mundo ficou sem mim. Um tempo para ir onde eu desejasse, sabendo que poderia ir em segundos a lugares que, se ainda vivesse, demoraria muito, mesmo de avião.
Em primeiro lugar quis ir ao rio da minha infância. No Outono. Folhas caídas, ninguém por ali, o barulho das águas cristalinas e jovens, centrifugando o ar, meu olhar. Olhei o local onde cortei o pé, onde aprendi a abrir os olhos dentro de água, onde ficava sentada tremendo de frio enrolada na toalha.
Depois quis sentar debaixo do coqueiro onde lia todas as tardes, nos dias que passei em Belize. Aproveitei e dei os mergulhos e as nadadas que costumava dar ali, com os peixinhos bicando minha pele, sempre que saía da água. Aproveitei para ir visitar a moreia e o tubarão que conheci naquelas águas mágicas. Onde morri de medo quando os vi e onde depois me senti valente.
Quis sentir de novo o medo e a insegurança daquela oral onde sabia tudo e não consegui dizer uma palavra. Estava muito confiante, sabia que sabia, mas de alguma forma, quando olhei aquele professor catedrático na minha frente me senti incapaz. Fui ali de novo para me acertar, para me resolver. Já passou. Está tudo bem. Sim, parecia que tudo ia desmoronar, mas foi seguindo que o que desmoronou, se construiu de novo.
Voei para aquela tarde em Itapuã, pelas 15h, comendo acarajé e bebendo uma Original, uma sensação de companhia, de entendimento, de paz. Para a primeira vez que vi um beija-flor ao vivo. Para a paz naquele sótão, naquela cozinha, naquela vida.
Fui visitar algumas pessoas que conviveram comigo. Ouvir o que diziam sobre mim, depois de eu morrer. Uns diziam que eu era teimosa, outros que era perseverante. Uns que era vaidosa, outros modesta. Uns que era lenta, outros que era rápida. Uns que era honesta, outros que era mentirosa. Uns que cozinhava bem, outros que fazia comida de principiante. Uns que tinha um sorriso maravilhoso, outros que tinha uma tristeza profunda. Uns que era competente, outros que era amadora.
Por fim, fui me sentar na mesa de pedra do terreno da Forca, chamado de a mesa do pensamento ou do lugar das decisões. Olhando aquela paisagem imensa e linda, escutando aquele silêncio tão agradável, me fiz uma pergunta: “Quem sou Eu?”
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
@buglatino
A Plataforma que te ajuda a Falar, Pensar, Ser Melhor.




Comentários