
Conto “AMOR QUE ESCORRE PELO CORPO COM A CHUVA”
Meia noite ela despertou, sem motivo. Que raiva ela sentia quando ‘suas luzes internas’ simplesmente acendiam o salão da sua mente no meio da noite. Na TV, ainda ligada, uma voz feminina vendia joias.
De repente, o barulho da chuva cobriu aquela voz e tudo ficou intermitente. “Você não ... perder um anel de ... lates, feito pra bri... nas festas.
A chuva aumentou e ao seu som delicioso, somou-se o barulho dos pneus dos carros que passavam na rua detrás. A partir daí não ouvia nada, mas isso não importava. Afinal, quem ligava pra joias?
Seus olhos piscavam e o tempo variava entre 1 segundo e 15 minutos a cada vez que seus olhos abriam e fechavam – talvez mais. Não havia, na verdade, o tempo como nós o vivíamos quando acordadas. Havia uma passagem para o tempo, fugaz ou preguiçosa, dependendo de cada piscada.
Assim, lá longe, ouviu o som dos fogos – os da alvorada de Iemanjá – sua rainha. Ela não entrou no seu sonho, mas a doçura de seus braços era o som da chuva que caía, era o acalanto da alma, do mar que recebeu com tanto amor as cinzas de sua mãe e que a recebia na praia com mãos mornas como a chuva que caía...
Logo cedo, às seis, sentiu primeiro a pena por ter perdido a possibilidade de acompanhar a festa, mas depois percebeu que aquele som da chuva, era como o do mar – delicado e forte – e que aquele abraço já havia sido dado, ainda no meio da madrugada – sem hora marcada, sem o olhar consciente porque orixá era assim, na Bahia. Você levantava os olhos e lá estava ele - encantado e encantador, lhe acolhendo em abraços que eram como laços de energia e emoção.
Engraçado que todo o dia transcorreu mágico, sem dores, sustos ou perdas. Um carinho nas plantas, passos pelo sol da rua, um sorriso ali, uma ajuda acolá, mas a sensação de que estava em acolhimento permaneceu. Ali, mais um momento sem nome, daqueles que só precisam ser sentidos para que se perceba a magia de morar na Bahia.
Suspirou. Odôyá, minha mãe!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Salvador meu amor”
- Oi Vizinha
- Oi Vizinha
- Hoje você está caminhando atrasada.
Ué? Ela tem alguma coisa a ver com a hora que eu posso caminhar?
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- Oi prima
- Oi prima
- Um destes dia vou visitá-la. Tomar um café da manhã, viu?
- Claro prima, venha quando quiser. Mas olhe que o nosso café da manhã é bem cedo.
- Não faz mal nenhum. Eu adoro acordar cedo.
- Então tranquilo. Pode vir amanhã mesmo. Como a gente sai cedo, a hora do café é 5h30 da manhã viu? Venha. Te aguardamos com muito carinho...
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- Oi tia
- Oi sobrinha
- Eu gostava de ir um dia visitá-la. Posso?
- Ué filha, claro que pode. Quando você quiser.
- Puxa que bom. E que dia é melhor para a senhora? E que horário?
- Não precisa marcar não filha. Pode vir quando quiser.
- Sim, eu percebi que podia visitar a senhora quando quiser, mas eu queria marcar.
- Marcar? Você não é da casa?
- Acho que sim
- Então não precisa marcar. Vem quando quiser.
- Tá bom
Adivinhe quando acontecem esses encontros....é nunca parceiro...
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- Alô?
- Operadora “secreta”, bom dia.
- Eu queria informar que tem um fio na minha rua que está cortado. E é da vossa operadora porque eu li no cabo o vosso nome. Os senhores podem vir arranjar por gentileza? É que está perigoso. Pode machucar alguém de moto ou ficar preso num ônibus ou camião/caminhão e pode provocar danos noutros fios, postes ou até árvores.
- Um momento por favor
Musiquinha
- Obrigada por aguardar senhora. Pode me informar o número do seu CPF/NIF?
- Posso, mas eu não sou da vossa operadora. Tem problema?
- Um momento por favor
Musiquinha
- Obrigada por aguardar senhora. Lamentavelmente não podemos registrar acontecimentos de pessoas que não são da nossa operadora.
- Ué, mas eu estou avisando de um problema seu. Estou lhe ajudando.
- Compreendo senhora mas não posso seguir com o atendimento.
- Tudo bem. Mas pode pelo menos fazer alguma coisa? Deve ter gente que está sem ligação, internet, sei lá eu.
Pi, pi, pi, pi....
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- Boa tarde
- Boa tarde
- Os senhores têm pititinga frita?
- Temos sim.
- Ótimo. Então vamos querer uma dose de pititinga, uma cerveja e uma coca zero com sumo de limão.
Dali a uns minutos o senhor vem com a cerveja e a coca zero. Abre a garrafa de cerveja, serve a cerveja no copo. Abre a lata da Coca Zero, coloca num copo que já tem suco de limão. E diz:
- Senhoras, me desculpem mas a cozinha informou agora mesmo que já não tem pititinga.
- Como é que é? Amigo, não vamos ficar não.
- Mas as senhoras pediram as bebidas. Elas já foram servidas.
- Não somos turistas não parsa.
Saíram
Dali a 100 metros outro restaurante. Antes de sentar perguntaram se eles tinham pititinga.
- Tem sim. Pode sentar que eu já venho.
- Amigo, tem a certeza.
- Tenho senhora. Pode sentar.
- Amigo, pode fazer o favor de perguntar na cozinha?
O cara já meio incomodado foi perguntar. E voltou. E disse:
- A pititinga acabou nesse instante
- Beleza
Saíram. Dali a 200 metros outro restaurante.
- Amiga vocês têm pititinga?
- Temos sim.
- De certeza?
- Sim, de certeza. Pode confiar. Podem sentar.
- Ok então. Nos traga uma dose de pititinga, uma cerveja e uma coca zero com suco de limão.
- Beleza.
Dali a uns 20 minutos lá veio finalmente a pititinga, a cerveja e a coca zero. Na mesma hora chegou um cara com violão que se sentou num canto a afinar o violão, a testar o som da coluna. Comeram, estava tudo bom. Felicidade finalmente. Pedem a nota/conta. Nesse momento o cara do violão começa a tocar e a cantar. Quer dizer, a tentar. Porque as duas caíram numa risota sem parar porque nunca tinham ouvido alguém tão desafinado. Parecia uma cena de teatro cômica. Muito bom.
- Amiga?
- Sim?
- Desculpe mas pode me explicar a nota?
- Tem a pititinga, a cerveja e a coca.
- Não. Tem aqui algo que não sei o que é e que valeu R$ 80,00.
- Isso é o Couvert Artístico
- Como é que é?
- Nós temos couvert artístico. Está informado no menu e afixado na parede.
- Ué...mas o cantor começou a cantar a primeira canção quando chegou a nota para pagar. Não vou pagar não fia. Não sou turista não.
............
- Amiga?
- Oi?
- Você já tratou do cadastro do seu carro para poder circular nos dias do Carnaval?
- Já. Logo que avisaram. Até sei o dia. Cadastrei no dia 22 de setembro de 2023 pela internet. E avisaram que entregam em casa o adesivo que terei de colar no vidro. No ano anterior disseram isso mas foi necessário ir buscar o adesivo no atendimento da Transalvador no Shopping.
- Mas este ano fique tranquila. Até ao dia 31 de janeiro eles entregam pelo correio.
- Pelo correio não é porque já perguntei. Deve ser uma entrega da Transalvador mesmo.
Até ao dia 31 de janeiro nada chegou. Nada. Nada.
- Por aqui amiga?
- Pois é. Afinal “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. E pelo tamanho da fila não nos enganaram só a nós não.
- E tem pior sabia?
- Como assim?
- Tem ali uma senhora que veio buscar o adesivo para o seu carro e os funcionários estão dizendo que já foi entregue. Mostraram foto até.
- Vixe....
Ana Santos, professora, jornalista
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