2 Contos: “A SEMANA NA “ESCALADA” e “Coragem por um dia”

Conto “A SEMANA NA “ESCALADA””

O dia começou como todos os outros. Veio um amigo aqui em casa. Um do tipo “mais querido do mundo”, sabe qual? Todo mundo deveria ter um amigo que quebra todos os segmentos de idade, gênero, raça, sociais para ser intransigentemente amigo. Bem, eu tenho esse privilégio. E no tempo do Natal, parece que as pontas vão se juntando com mais facilidade.

Também tenho um afilhado “tipo querido e ausente”, que some da vida, mas quando reaparece, parece que foi ontem. Não é que os dois vieram ao mesmo tempo? Não é que os dois foram, no mesmo dia, por motivos diferentes, parar num centro cirúrgico?

Engraçado porque meu afilhado tem hoje, a mesma idade que meu amigo atemporal, que foi meu estagiário, mas que, para além do emprego, era meu “parça” – aquele com quem eu planejava milimetricamente o andamento da Tv, dividindo funções e criando soluções. Não existe audiovisual sem criatividade e esse entusiasmo de criar alegremente, nós sempre tivemos. Até falei que nosso brainstorming nunca teve o “storming” porque era um pic nic criativo, muito mais que uma tempestade.

Meu afilhado – que agora tem a idade do meu ex estagiário, engraçado – não tem a alegria, o entusiasmo que na TV sempre mantivemos no dia a dia. Isso me deixou preocupada porque se ele não tem entusiasmo aos 20, com que idade o poderá sentir?

Meu amigo atemporal também chegou com os olhos mais apagados – muito cansaço e pouca conexão com a criatividade que fica sem espaço para aparecer por causa do cansaço...

Todos parecem cansados demais para serem entusiastas da criação, da resposta, da surpresa. A mãe do meu afilhado se perdeu em algum lugar que nem sei nomear qual foi. E também era tão talentosa e entusiasmada quando eu lhe dava aulas na universidade...

Assim, lembrando livremente, no caruru de Iansã encontrei outra ex aluna – entusiasta das palavras, assim como eu. E consegui novos amigos – entusiastas do trabalho conjunto como meio de construção de cidadania e isso é muito difícil – como uma nova aventura que está diante dos olhos de todos, com muitos inimigos, muitos percalços, mas muitos novos amigos que sabem se desafiar com amor.

E assim, examinando tantas idades, pouso minha mão na pessoa que me apoiou e que eu apoio. Sempre. Sempre. Dois mundos diferentes, sendo um feito de ar e outro de terra.  Mas, assim como os elementos, se complementando sempre. Muito bem. E no nosso mundo parece sempre sobrar tempo para um novo objetivo, um novo desafio, gargalhadas, caminhadas e aventuras.

A soma disso é um pouco a nossa vida, creio. Tem guerra e passarinho. Mico social e o que passa no fio do poste e encanta. Briga de bem-te-vi e gavião – e fora do prognóstico, o gavião apanha! Pena que a Palestina não tenha ainda a força para surpreender Israel – assim como a Síria foi surpreendida.

Uma vida afinal é o lugar onde cabem muitas outras vidas... cabem democracias sempre, desenvolvimento, olhares argutos que captam a corrupção do Congresso que ninguém mais tenta esconder. Mas onde cabem também palavras como Dinda, te amo, amigo, amor, trabalho e – ENTUSIASMO.

Cada dia é mais um dia – ou menos um – nosso otimismo é quem faz essa conta.

Quando iremos nos rever não sei, mas certamente vai me parecer que foi ainda ontem porque o amor decanta o tempo e guarda pra si apenas o encantamento entusiasmado da existência, a atividade, o brilho nos olhos e a sempre presente risada – aquela pra qual os censores sempre fazem “psiu” nas emergências... Mas viver, é algo assim...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

Conto “Coragem por um dia”

“É hoje!” – pensa.

Finalmente sente que tem coragem de ser o homem que quer ser. É jovem, se sente maduro, capaz, inteligente, capaz de se sustentar, de seguir seu caminho sem as orientações dos pais. Chega disso. Já não tem paciência para os ouvir, nem para as suas regras aborrecidas, sem nexo, infantis, irritantes. Afinal estuda na faculdade, já trabalha, tem uma companheira. Porque tem de os suportar? Não tem, por isso chegou a hora. Tem dinheiro suficiente para alugar um apartamento, para pagar suas contas, seus estudos, tudo o que um individuo maduro tem de arcar.

Resolve fazer as malas de noite, enquanto os pais estão dormindo, para eles não perceberem. E, pela manhã, umas 10h, já o pai e a mãe saíram para o trabalho, pode sair sem eles perceberem.

Está ansioso. Precisa de falar com os amigos sobre o seu feito, a sua grande atitude.

- Evanilson?

- Oi amigo. Tudo certo?

- Tudo. Liguei para te contar que finalmente vou sair de casa.

- Sério? Você realmente vai fazer essa loucura, cara?

- Vou. E loucura é ficar.

- Você que sabe. Desejo que corra bem. Que não lhe aconteça o que aconteceu comigo.

- O que aconteceu com você? Não sabia que tinha tentado sair de casa. Você é tão feliz aí, com seus pais.

- Exato. Sou feliz. Muito feliz. O problema estava em mim e na minha cabeça.

- Tá...o que aconteceu afinal?

- Aconteceu que eu sai de casa e dali a duas semanas fiquei doente por causa das porcarias que comia – não sei cozinhar e você sabe que eu amo comida que não presta. Também já não tinha mais roupa limpa, o apartamento estava sujo, desarrumado, com várias coisas avariadas – torneiras, descarga, fogão, pia. Fui parar no hospital e quando sai, já fui de volta para a casa dos meus pais...

- Entendi. Tenho de ir amigo. Não fique chateado mas não quero que você me desanime.

- Tranquilo. Um abraço e boa sorte. Desejo que corra tudo bem.

____

- James?

- E aí?

- Estou ligando para te dizer que finalmente vou sair de casa.

- Tá maluco...sério isso? Mas tu é burro, teimoso e orgulhoso, hein?

- Caraca, James...

- Caraca nada amigo. Tu tem uns pais maravilhosos, que te dão tudo, que são super parceiros e tu vai fazer essa safadeza com eles? Tou fora. Nem quero saber. Vou desligar e esquecer que você ligou. Fui...

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- Ana?

- Oi amor.

- É amanhã de manhã.

- Que vai acontecer o quê?

- Que vou sair de casa.

- Tem juízo. Você esqueceu que amanhã é o exame de mecânica quântica? O exame que o professor marcou há 6 meses e onde ele vai escolher os 6 que vão trabalhar na investigação dele, dos próximos 4 anos?

- Esqueci...

- Esqueceu? Onde você anda com a cabeça?

- Meu pai ontem me tratou como uma criança.

- Porquê?

- Porque eu não trato do meu quarto, não ajudo em casa, não tomo banho, não lavo os dentes. Me tratou muito mal, Ana. Não quero mais viver num lugar onde me tratam tão mal.

- Sinceramente... Eu não posso perder tempo hoje porque amanhã quero que seja o dia em que eu inicio minha caminhada para trabalhar na NASA. Não posso ficar te ouvindo com essas queixas bizarras.

- Puxa, Ana.

- Puxa nada. Como você quer viver sozinho se você não sabe viver, tratar de uma casa, nem de você, na casa de seus pais? Com toda a ajuda? Acha que vai acontecer algum milagre e no seu apartamento você vai ligar um botão especial e fazer tudo o que nunca faz? E além disso, veja a sua irresponsabilidade de esquecer a importância do dia de amanhã nas nossas vidas profissionais. Imagino que não estudou nada, nestes últimos meses – o que significa que me mentiu... Enfim. Desculpe mas eu preciso me preparar para amanhã. Depois de tanta dedicação não posso estragar todo o meu trabalho por causa dos seus pensamentos irreais. Eu vivo a vida real. Nem tenho pais para me dar ao luxo de pensar em deixar a casa deles. Cresça querido...

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Caraca, estas conversas estragaram toda a sua vibe. Entretanto ficou com fome e sono. Pensou na delicia de comida que a mãe fez para o jantar. Resolveu adiar a sua ação de coragem. Voltou a arrumar as roupas no lugar e foi dormir. Adormeceu pensando que precisa arranjar outra namorada e outros amigos. Estes não o ajudam em nada.

Ana Santos, professora, jornalista