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2 Contos: “MORRER NÃO É PERDER” e “Preta”

Felícia Leirner
Felícia Leirner

Conto “MORRER NÃO É PERDER”

              Engraçado o nosso conceito de morte. Parece uma coisa ruim, mas, na verdade, é apenas mais uma coisa que se repete e nos segue por toda a vida. É como se as pessoas opusessem vida e morte, quando nem me parece muito que sejam forças que se opõem.

              Um bebê por exemplo, quando vira criança, deixa pra trás e, portanto, deixa morrer, aquela fase de xixi, coco, choro, sono e mamada. Mas o bebê não morre, apenas evolui, cresce, muda seu patamar de desenvolvimento. Isso se repete sempre e o tempo todo: na adolescência deixamos nossa criança pra trás, é uma fase difícil porque temos que matar um ciclo inteiro e, maduros ou não, prontos ou não, temos que entrar na vida adulta. Conheço mil adultos em idade, que se negam a matar as birras, malcriações, as “trocas de dedos para ficarem de mal ou de bem” com a humanidade.

              - Fulano não falou comigo, não me deu presente, me ignorou na festa, mudou de bairro, casou ou qualquer coisa diferente de uma rotina rígida e inflexível – e me deixou pra trás. Um beicinho, uma mágoa e – lá está – a não evolução, o não uso da empatia. Apenas aquele toque egocêntrico das crianças pequenas num corpo adulto. Atípico, mas existente – talvez existencial.

              A morte da escola se transforma na vida universitária, no desafio de aprender a debater, a enfrentar seus medos e se desafiar, ao aceitar novos desafios. Afinal, vida é sempre o novo. É aprender coisas arrebatadoras como levantar a cabeça e entender que você aprendeu a andar de bicicleta sozinho, se equilibrou num pé só, aprendeu a boiar e – logo ali – “matou” o nado cachorrinho porque aprendeu a bracejar e nadar e a dirigir um carro, uma moto, a defender suas teses, seus pensamentos... A gente mata o que é velho cada vez que se joga no vazio da curiosidade e descobre um novo conhecimento. Evolui-se a cada morte. Se apoia no que vai ser substituído, o usando mesmo como um trampolim – e se joga no novo.

              Aí vem a idade, a doença e aquele corpo alquebrado, moído, olha ali na frente e enxerga uma luz exuberante, a energia de uma vida muito além de um corpo. Uma vida que não perde tempo precioso justificando o fato de ser eterna porque existe ou não pecado, existe ou não culpa, existe ou não castigo. Enxerga a vida como ela é, finalmente: eterna e com grandes momentos de percepção, de consciência plena, maturidade - e se vê na emoção de estar com um corpo alquebrado, mas com o espírito humano vívido e iluminado, cheio de esperança e curiosidade por novos horizontes e descobertas e pessoas amigas que partiram, as que ficaram, as que deixarão saudades e aquelas que nos esperam ao final dessa troca de energia.

              Não há nenhuma perda, apenas substituição. A troca de nossa fase humana, pela nossa essência divina.

              Muitas pessoas se vão da vida, mas morrer não é acabar, é evoluir. Vamos sentir saudades, mas como numa viagem, podemos pedir que quem vai primeiro nos ajude ao chegarmos, que nos receba no aeroporto, que nos dê a mão e nos passe confiança pela “janelinha”, na hora da despedida. Que nos olhe. Porque o amor, o amor é eterno, a amizade é eterna e dentro da eternidade qual a importância do tempo? O que é um dia diluído diante do tempo? Do Universo?

              Levantou os olhos e viu o sol. Aceitou cada momento que tiveram juntos, agradeceu a oportunidade de vive-los, pensou no amor, no perdão, no Hoponopono, imaginou o salto no eterno e – engraçado – ao invés de chorar, sorriu.

              - Uma despedida e tanto! Me espere quando eu chegar, arrume tudo!

              Uma parte de seu coração ficou como semente para a saudade molhar e cuidar.

              - Continuo com as aulas! Não se preocupe! Vou tentar tirar boas notas, juro!

              ...

              Vá em paz, Preta...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Preta”

Sou portuguesa daquelas que algumas pessoas achavam que nunca sairia da sua aldeia, da beira de seus pais, seus irmãos, seus hábitos. A vida decidiu, talvez desmentir essas pessoas, não sei. Sei que numa idade que parece que já tinha feito tudo o que seria mais arriscado, mais aventureiro, algo aconteceu. Aconteceu o que ninguém esperava – nem eu - uma mudança radical.

Você sofre um enorme abalo, mas os outros não conseguem te entender, alguns nem apoiar, porque eles levaram um abalo aparentemente ainda maior ao considerarem que tudo foi feito sem nenhum cuidado, sem aviso, sem conciliação, sem fumo branco talvez. Ficam se lamentando em vez de apoiarem, ou se deixarem quietos na sua vida. Com esse desconforto, causam grande estorvo, impedem o fluir natural. Assistir ao movimento inesperado de uma vida, atinge todas as vidas que tomam conhecimento, não atinge só a sua. Por isso algumas pessoas não desejam o movimento da vida das outras pessoas porque isso vai fazer movimentar a sua vida, vai chacoalhar todas as suas dúvidas, medos, fragilidades.

Só que quem diz o que é para fazer é a vida, não somos nós.

Tive um trabalho que em algumas situações me permitia estar perto de celebridades. Algumas que você fica olhando, tentando perceber como conseguem ser humanas, como por exemplo o Eduardo Bolsonaro, provocando as pessoas na Câmara de Vereadores da Cidade de Salvador, na busca de piorar mais ainda a situação das escolas. Lembro de me aproximar dele quando estávamos todos saindo e de tentar perceber como um corpo, um ser humano, era capaz de ser tão desagradável por dentro e por isso desagradável para fora, para todos nós. Me incomoda até hoje esse triste momento.

Outras pessoas passaram por ali. Muitas. Muitas que eu nem sabia a sua real importância. Outras sim. Acontecia também de nesse horário nem sempre eu estar a trabalhar, principalmente quando as celebridades vinham para cerimônias pelas 19h, 20h, pela noite dentro. Mas no dia em que foi realizada uma homenagem à Flora Gil, mulher de Gilberto Gil, eu estava escalada para trabalhar e era nesse horário e para essa homenagem. Muita gente, muita celebridade, muita coisa para cuidar. Os horários precisam ser cumpridos por isso a preparação começa muitos dias antes e nesse dia algumas horas antes. Nada pode falhar. Gilberto Gil e Flora chegam, são colocados na sala onde a cerimônia vai começar a ser transmitida pela TV Câmara de Salvador. Flora Gil é entrevistada, Gilberto Gil assiste divertido. Chega mesmo a tentar lembrar o nome de um filme que gostou e a gente até deu uma ajuda na recordação do nome. Ele olhou a gente, agradeceu. Foram chegando pessoas e mais pessoas para depois se dirigirem para o local da homenagem. Em determinado momento da entrevista, Flora quis chamar Preta Gil. Gilberto Gil ouviu, disse que a ia chamar e olhou para um lado da sala chamando: “Preta, Preta”. Percebi que no meio de um grupo grande de pessoas da família Gil, estava Preta Gil de costas para nós, falando, brincando, conversando com todos. Não ouvia o pai chamando por ela. Ele continuou chamando mas no meio de tanto ruído, gente, e Preta de costas, distraída com conversa, estava difícil. Eu resolvi me dirigir a ela para a avisar que seu Pai estava chamando por ela. Como Preta estava de costas, decidi colocar a minha mão no seu cotovelo suavemente, aguardei que se virasse e depois com um sorriso pedi desculpa e informei que seu Pai a estava chamando.

Tinha ouvido e lido muita coisa ruim sobre ela - que era braba, destemperada, rebelde, tudo com conotação bem negativa. Fiquei com medo dela não reagir bem ao meu contacto e intromissão. De levar um “chega para lá”. Mas Preta, virou-se quando sentiu meu contato físico, me olhou estranhando essa forma pouco baiana, quando lhe disse que seu Pai queria falar com ela, me deu um dos sorrisos mais lindos que você possa imaginar, agradeceu e foi ter com o Pai.  

Hoje, vejo imagens por todo o lado do seu velório. Todas as celebridades presentes, toda a família, todos os amigos.

Se eu estivesse participando na organização, queria poder tocar seu cotovelo com minha mão de novo, aguardar que se virasse, olhasse para mim, talvez dizendo: “você de novo?” e eu, em seguida, diria “estão todos tão tristes, Preta, o que fazemos agora?

Ana Santos, professora, jornalista


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