Nós andamos sendo arremessados de um lado para outro com essa nova idiotice de que só há duas formas de ver o mundo e uma despreza a outra. No Brasil, então, anda me dando nojo, isso. Só lembrando que muitas guerras em países da África começaram com separações que pareciam singelas como a dos tutsis e hutus, por exemplo. Acho mesmo indecoroso tentarem nos dividir assim.
A noção do trabalho mudou muito. E isso tem menos a ver com a ideologia, mas sim com a falta de humanidade do mercado, diante de pessoas que não conseguem oferecer a mão de obra “da moda”, na idade “certa”, corpo e figurino “exatos”, o conhecimento das pessoas que farão “A indicação” dos sonhos. Nisso, nesse tópico, a visão da esquerda é melhor ou pior do que a visão da direita? Quando um presidente da república diz que “guarda o filé” para os próprios filhos, chegamos à conclusão de que, ideologias a parte, tudo nasce da forja do caráter.
Você não estava aqui, começa com uma proposta de trabalho diferente, onde nós seremos senhores do nosso tempo e do nosso trabalho. Onde se ganha o que se trabalha, onde a dedicação à empresa contratante é remunerada. Uau! Inglaterra maravilhosa, que oferece até o financiamento do furgão novo que o trabalhador vai precisar.
Passo a passo, como é de seu costume, Ken Loach recria o inferno diante de nós, onde as relações vão sendo relegadas ao último plano por tantas obrigações, multas e sacrifícios exigidos ao terceirizado da vez. Um filme indecoroso. Ultrajante mesmo. Que nos coloca em nosso lugar de nada, diante dos “princípios da economia”- ela sim - intocável. A economia pode nos roubar dignidade? O mercado, as ações, são exatamente iguais ao que vende os planos de saúde e escolas privadas? Não existe nenhuma diferença entre você vender aprendizagem, um raio X, um repolho, uma “arminha” ou um foguete? E a gente vai assistindo tudo se deteriorar na sua frente.
Na saída do cinema, você cruza com um monte de jovens motoqueiros entregando comida à mil por hora e se pergunta se aquilo é uma oportunidade de trabalho ou uma nova forma de escravidão, como no filme. Todos falando menos, sendo mais agressivos, sofrendo horrores. Alguém olhou para os isopores de marca de cerveja no carnaval e viu as pessoas deitadas pelo chão, sobre papelões, dividindo espaço com o lixo ou só comprou a cerveja do carnaval e jogou a latinha no chão porque afinal alguém vem pegar? Abandono, egoísmo, falta de preocupação com o outro e zero de empatia são ideológicos? São? É só pensar em Trump e Putin pra gente perceber que, infelizmente, não.
O filme é obrigatório para anestesiados ou inseridos socialmente. Ele deveria ser obrigatório para estudantes e políticos. Aliás, as duas classes deveriam ver o filme juntas. Eu adoraria assistir ao debate depois.
Imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Quem pertence a uma família rica, tem empregos bem remunerados, assegurados e estáveis, vai ver um filme difícil. Todos os outros seres humanos – talvez 90% do mundo - estão ali e vão sofrer muito se vendo. Falo particularmente de famílias europeias que viviam vidas razoáveis, equilibradas, medianas – mas felizes. Que se queixavam um pouco, mas tinham tempo livre, tinham dinheiro, lutavam pelos seus sonhos e tinham uma vida quase perfeita. Seus empregos eram estáveis e deixaram de ser, tinham regalias e vantagens que deixaram de ter. Do nada. Desde 2004/2005, mais ano, menos ano, caiu sobre elas o peso da “economia”, da “recessão”,, de todas as mudanças “estranhas” que aconteceram no mundo e foram vendo suas vidas piorando progressivamente. Antigamente, viviam. Agora, sobrevivem.
A escola e a educação já não conseguem cumprir de uma forma saudável os seus propósitos. Nem para os alunos, nem para os professores, nem para os funcionários ou auxiliares de ação educativa, nem para as famílias, nem para as comunidades. Não conseguem se adaptar ao novo mundo. Necessitam de grandes e urgentes mudanças.
As famílias de classe média cada vez têm menos qualidade de vida e estão descendo para um lugar onde não existe sossego, dinheiro, comida, um lar, saúde, tempo, descanso. Uma vida. Onde não têm tempo para estar com os filhos, para os educar, para os amar. Nem têm tempo para estar em família, ou com os companheiros, sem estarem exaustos ou preocupados. Os filhos vão sendo educados por pessoas estranhas, se revoltando pelo mundo que vivem e por verem os pais sofrendo. Por sentirem que também são a causa desse sofrimento. Por não terem futuro. Alguns tentam ajudar, mas são jovens e inexperientes – ao tentar ajudar muitas vezes ainda pioram mais as situações. Outros tentam se revoltar, ter uma voz, mas ao fazerem isso quebram limites sociais que os marcam muito cedo como desagradáveis e perturbadores socialmente. Afinal, todos eles são muito talentosos, amam a família e estão assustados por não verem soluções. E não querem sofrer o que os pais sofrem. E revoltam-se.
O mundo tão difícil dos cuidadores e o mundo cada vez maior dos que precisam desses cuidados.
Um mundo cheio de sistemas e organizações com controle tecnológico, onde o ser humano é a “máquina” que mais erra. Onde é descartável. Tem uma fila de pessoas esperando o seu lugar, desesperados. Aceitando cada vez menos dinheiro, piores condições.
Um mundo que fere a dignidade e o orgulho. Que destrói famílias, sonhos, aumenta inseguranças. Que reduz as pessoas a números, resultados. Que deixa as pessoas cada vez mais sozinhas, inseguras e incapazes de se cuidarem. Que tira a liberdade de cada um a cada instante.
Ken Loach, com mais um filme intimidador e necessário. Prepare o estômago para o soco de realidade, quando se sentar para assistir.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8359816/
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha
https://www.itaucinemas.com.br/filmes/
Circuito de Cinema SALADEARTE