Quem pensa carnaval na Bahia, pensa festa, alegria. “Sorria, você está na Bahia!” Hoje, passando pelo Othon, em Ondina, o que a gente vê está muito longe do sorria – está muito longe de qualquer esboço de sorriso, na verdade.
Há 20 anos atrás, eu passei no meio de um tiroteio no Rio e, por não achar nada normal ter que fugir de tiro, mudei pra Salvador. Mas não é normal a gente ver as pessoas disputando espaço no chão das ruas para sentar, dormir, comer, tomar conta de menino pequeno. Não é normal as pessoas concordarem em se favelizar por 10 dias, em prol da alegria – ou do que quer que seja. Também não é normal que as outras pessoas as vejam e sintam que é assim mesmo, que está ok – é ultrajante isso.
Passem pela frente do Othon. Uma cervejaria coage todos a consumir a sua marca de cerveja (e veja, eu não bebo, pra mim tanto faz qual cerveja tem) – mas ao fazer isso, concorda que há essa divisão entre os que dormem na rua e os que se divertem nela. Aos que se divertem, é permitido descartar latas, fazer sujeira, rir alto, encher a cara. Aos que dormem na rua, resta abandonar suas casas cada vez por mais tempo, dormir ali pela rua, não conseguir acesso à higiene básica, como lavar as mãos e tomar banho, conviver com o lixo dos outros, pegar o lixo dos outros, ensacar o lixo dos outros, ver seus filhos pequenos ao redor do lixo dos outros. Dos outros, dos outros, dos outros... isso não gera nenhum incômodo? Você está lá no camarote com sauna, massagem e tudo o que a sua imaginação criar, mas ao chegar à janela vê a crua realidade das pessoas que optam por estar atrás do isopor/esferovite, vendendo as cervejas que todos consomem e também guardando, ensacando, mascarando a sujeira de quem consome e descarta em qualquer lugar.
Tudo bem. O carnaval da Bahia é nosso, é do povão, é de rua. Mas manter exatamente a mesma organização do século passado, não planejar nada novo, nenhuma maquete de barracas, banheiros com água para os vendedores poderem se limpar, nenhuma organização diferente para que eles tenham um lugar digno, é... indecente. Aí você passa de carro, vê as pessoas deitadas pelo chão, por ali, por qualquer canto, dormindo ou sentadas, ou comendo, ou... e se pergunta se o carnaval é pra “cegos verem”, pra “inglês ver”, se o carnaval passa limpando apenas “onde passa o bispo”... enquanto o cheiro do xixi dos ricos que não querem usar o banheiro químico se mistura ao do xixi dos pobres, que não têm água nenhuma e fazem tudo por ali mesmo, já que ninguém é de ninguém no carnaval...
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré, Rosto Negro, Sangue Índio, Corpo de Mulher”
Excerto do Samba Enredo, Mangueira, 2020
E eis que um dia sua vida pode mudar e você passar a viver na cidade onde acontece o maior carnaval do mundo. E a casa onde foi morar é a 5 minutos a pé de um dos 3 circuitos do Carnaval. Você ouve o zumbido da multidão, a música dos trios elétricos, a energia no ar.
Uma quantidade de obras enorme, de ruas interditadas, de mudanças, pintando as calçadas/passeios, podando as árvores. As ruas, que sempre estão tão mal iluminadas, favorecendo a insegurança, nos dias do Carnaval iluminam mais do que o sol. É impressionante. As ruas mais perigosas podiam manter essa iluminação...
Todos os anos é necessário pedir a credencial da Prefeitura para o carro poder circular nas ruas até casa. Porque as ruas onde acontece o Carnaval, ou as ruas próximas só permitem acesso para quem é morador, a partir de determinados dias e horários. Uns anos tudo acontece com antecedência e em outros anos, a confusão total. Ás vezes parece tanto Portugal...
O Carnaval traz o olhar de turista e o olhar de morador. O turista vem, chega e tudo é bonito, todos são simpáticos, tudo é diferente e enriquecedor. Você armazena histórias para contar. E, tudo é muito barato, porque o real é uma moeda invisível no mundo de hoje. Como é possível o real ser 5 vezes menor ao euro ou dólar? Parece piada. O turista compra tudo, até o que não precisa e tudo pode. Olha o País como algo menor, afinal tudo pode ser comprado.
Quem ouve um samba enredo, com a letra do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira deste ano, ouve uma prece, um desabafo, um chocante grito de dor e desigualdade. Um povo dolorido pelas marcas da história, que no momento do Carnaval explode a sua alegria, talento e absurda capacidade de trabalho. Enquanto 3 milhões de pessoas na cidade de Salvador e 7 milhões na cidade do Rio de Janeiro, curtem estes dias entre praia, cerveja e pulando nas ruas, uma multidão invisível trabalha das formas mais inacreditáveis para tentar ganhar mais algum dinheiro para a sua vida de sobrevivência. Brasil, Brasil, és terra de chocantes vivências e de duras realidades. A beleza e a festa custam muito aos invisíveis.
Estas últimas noites, as chuvas e a trovoada acordam os sonos sossegados, das camas limpas e tranquilas. É impossível não pensar nas famílias que estão dormindo na rua, debaixo de plásticos e papelão para guardarem o seu lugar de venda de cerveja, nos Circuitos do Carnaval. Para que durante a tarde e noite, o turista só precisa estender o braço para comprar uma cerveja e de abrir a mão para deixar cair no chão a lata vazia. Algo profundamente chocante. Mas ainda tem pior: imediatamente um ser humano, sim, um ser humano de saco de plástico velho na mão, circula abaixo da cintura de todos os que pulam e trabalha por sua conta recolhendo as latas vazias – cada quilo de latas vazias que entrega, ganha 1 real. 1 Real = 0,21 Euro / R$ 1,00 = € 0,21. Ainda tem mais uma coisa muito chocante. Para além desses vendedores em toda a calçada/passeio, ainda tem homens com pacotes enormes com cerveja gelada, no ombro ou na cabeça, circulando, literalmente no meio do povo pulando. Eu recrutava todos para algum esporte porque seriam campeões olímpicos. O que fazem é absurdo, difícil e tremendamente cansativo.
Os bancos, os comércios, as escolas, todas as instituições e serviços colocam proteções nas entradas dos seus edifícios para não serem invadidas, roubadas, nem se quebrar nada. Você, se não viaja, sai pela manhã cedo para fazer as tarefas obrigatórias e depois volta para casa. Compra mantimentos para 10 dias de Carnaval e reza para ninguém ficar doente de noite em sua casa, porque será impossível a pessoa chegar ao hospital.
Existe uma energia diferente na rua. As pessoas parecem mais irritadas ou apressadas e no trânsito é um dos lugares onde tudo fica um pouco mais difícil. Mas a energia diferente exige fundamentalmente cuidados reforçados para as mulheres, com carro, celular, dinheiro e lugares para onde vão sozinhas, a pé ou de carro.
Mas nada tira o enorme orgulho de viver na cidade do melhor Carnaval do mundo.
Ana Santos, jornalista
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