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A Mentira em Poesia

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 25 de jun.
  • 4 min de leitura
Felícia Leirner
Felícia Leirner

“A IMPLOSÃO DA MENTIRA OU O

EPISÓDIO DO RIOCENTRO”

 

  1

 

Mentiram-me. Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente. Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.

 

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes. Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.

 

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.

 

Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.

 

  2

 

Evidente/mente a crer

nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo

permanente.

 

Mentem. Mentem caricatural-

mente:

mentem como a careca

mente ao pente,

mentem como a dentadura

mente ao dente,

mentem como a carroça

à besta em frente,

mentem como a doença

ao doente,

mentem clara/mente

como o espelho transparente.

 

Mentem deslavada/mente,

como nenhuma lavadeira mente

ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem

com a cara limpa e nas mãos

o sangue quente. Mentem

ardente/mente como um doente

nos seus instantes de febre. Mentem

fabulosa/mente como o caçador que quer passar

gato por lebre. E nessa trilha de mentira

a caça é que caça o caçador

com a armadilha.

 

E assim cada qual

mente industrial? mente,

mente partidária? mente,

mente incivil? mente,

mente tropical? mente,

mente incontinente? mente,

mente hereditária? mente,

mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constroem um país

de mentira

diaria/mente.

 

  3

 

Mentem no passado. E no presente

passam a mentira a limpo. E no futuro

mentem novamente.

 

Mentem fazendo o sol girar

em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu

quem mente,

mas o tribunal que o julga

herege/mente.

 

Mentem como se Colombo partindo

do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira

um continente.

 

Mentem desde Cabral, em calmaria,

viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país

num acidente de percurso.

 

  4

 

Tanta mentira assim industriada

me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas

e oboés, como um solista vegetal

que sorve a vida indiferente.

 

Penso nos animais que nunca mentem,

mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros

cuja verdade do canto nos toca

matinalmente.

Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel

silvestremente.

 

 

Penso no sol que morre diariamente

jorrando luz, embora

tenha a noite pela frente.

 

  5

 

Página branca onde escrevo. Único espaço

de verdade que me resta. Onde transcrevo

o arroubo, a esperança, e onde tarde

ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema

explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem

ao substantivo

e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade.

 

E a mentira repulsiva

se não explode pra fora

pra dentro explode

                                 implosiva.”

Affonso Romano de Sant’Anna

 

 

“O Pardal Solitário”

 

“Do vértice que aguça a torre antiga,

Solitário pardal, rumo à campina

Cantando vai enquanto a luz perdura;

E flutua a harmonia pelo vale.

A primavera em torno

Cintila no ar, e pelos campos vibra,

Tocando o coração de quem a mira.

Ovelhas balem, muge o gado em júbilo;

Brincam em bandos pássaros festivos

Que traçam espirais no céu aberto,

Saudando o tempo que se regozija.

Tu, pensativo e alheio, tudo espias;

Não te animas, e ao riso te recusas;

Cantas, e é assim que cruzas

Do ano e da vida a mais bela das flores.

 

Ai, como se assemelha

O teu costume ao meu! Folgança e riso

Da tenra idade idílica família,

E a ti, amor, irmão da juventude,

Suspiro amargo dos maduros dias,

Não busco, não sei como; ao invés, dele

Quase me esquivo e acanho;

Quase eremita, e estranho

Ao meu torrão natal,

Passo de minha vida a primavera.

É costume brindar em nossa aldeia

A esse dia que aos poucos anoitece.

Ouve no céu sereno o som de um sino,

Ouve o espocar dos tiros de um fuzil,

Que ribomba acolá, de vila em vila.

Vestidos para a festa,

Os jovens do lugar

Saem de casa e espalham-se na rua;

Olham-se e são olhados, e sorriem.

Recém-chegado e só

A essa remota parte da campina,

Cada deleite e jogo

Adio sempre; e todavia o olhar,

Distenso no ar radiante,

Fere-me o sol que ao longe, entre as montanhas,

Depois que o dia aquece,

Caindo some, e diz-me, agonizante,

Que a casta juventude desfalece.

 

A ti, ave sozinha, quando à noite

Da vida te levarem as estrelas,

Lembrar o teu costume

Não doerá, pois da natureza é fruto

Teu apetite antigo.

A mim, se não consigo

Da velhice evitar

O tão odioso umbral,

Quando este olhar emudecer às almas,

E lhe for erma a terra, e o seu futuro

Do que o presente mais tedioso e horrendo,

Que direi desse afã?

E destes anos meus? O que de mim?

Terei remorso, enfim,

E, triste, irei então retrocedendo.”

Giacomo Leopardi

Tradução de Ivan Junqueira


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