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3 Contos sobre Mulheres Adultas


"Manual do Monólogo Médico"


Não entendi muito bem. Hímen complacente... “Um elástico, um chiclete”, a ginecologista me disse. Lembrei bem das minhas colegas de escola sonhando em transar com o mundo inteiro e permanecerem virgens.


“Mas engravida, viu”? - Hímen complacente não era camisinha, resumindo.


E agora, faço o quê? De que adianta um hímen complacente, afinal? Minha vida mudou em quê?

“Tenha juízo, menina. Você não vai transar com qualquer pessoa só porque vai continuar virgem”.


Eu nunca entendi mesmo as pessoas. A pressão foi tanta que nem consegui me sentir um fenômeno. Senti muito mais o peso da mentira possível, por eu transar com alguém sabendo que iria continuar virgem. Achei falso. Hoje em dia me pergunto se a sociedade invade a nossa vida até mesmo através de uma ginecologista pra tentar impor padrões – seus padrões.


O que me satisfaria? Que ideia, sujeitar minha vida àquela coisa idiota de hímen complacente... Amar. Sentir que seja o que for, eu faria a minha escolha pelo amor que sentisse.


Passam-se os anos e hoje hímen complacente é um termo que simplesmente acabou. Não existe. Virgindade também é uma palavra morta. Mas talvez minha decisão não tenha sido tão má, afinal. Continuo acreditando que apenas sexo não é suficiente, continuo achando a sociedade estranha e com normas que mudam, mas continuam a obrigar a que entremos numa caixa, continuo vendo pessoas cínicas que sonham com oportunidades tipo “hímen complacente” pra “transarem escondido à vontade” e negarem isso. Ou whatever. Esse tipo de pessoa é cara de pau suficiente pra justificar qualquer coisa que faça.


Eu continuo sem entender muito bem, mas fora da caixa pelo menos.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV



"Ana Conta...ou não?"


Ana tem um ar de quem não faz mal a uma mosca. Acha que é bondosa, mas talvez as pessoas achem que é boba porque a todo o instante tentam enganá-la, mostrar-lhe melhores caminhos, aconselhar decisões e futuros. Talvez achem que não é capaz. Subestimam.


Ana é um ser humano com vontade, com um caminho e com coragem. Mas a todo o instante a desconsideram, acham um absurdo as mudanças que faz na sua vida, o que ela decide fazer, vestir, dizer, construir, o sucesso que consegue. Também desconsideram a coragem e a determinação sempre que ela diz “não”. Ana, lá no seu canto e no seu mundo, sabe bem o que quer. Engraçado que nas suas derrotas e tragédias, acham tudo comum, normal. Será que é por ela ser pequenina? Magra ou gorda? Aparentemente frágil ou bruta? Pobre ou gastadora? Só ou com gente que faz tudo por ela? Feia ou bonita demais? Estrangeira ou sem lugar?


Ana é uma mulher que não entende porque é tratada de forma diferente se tem a mesma coragem, ou por vezes, mais coragem do que os que parecem ser privilegiados. Tudo que surge na sua vida ela enfrenta de peito aberto. Aprendeu que viver é isso e é isso que faz com toda a sua alma.


Ana dizem que é negra, mas só é lembrada disso nos olhares preconceituosos. Ao espelho não vê nada de cores melhores ou piores. Ao espelho vê seu coração, sua alma, sua coragem, seus sonhos, seu futuro. Porque todos vão para a praia tentando ficar “muito morenos” mas a cor dela tira o sorriso das pessoas?


Ana é trans. Deseja muito ser feliz. Como todos. Mas precisa de mil cuidados. Nunca pode ser quem é de forma descontraída. A vida é tensa, exige precauções, é perigosa. E ela que é extremamente sensível, sofre muito com isso, no silêncio de si. Não pode confiar em ninguém. Nem em quem parece ser confiável. Teve de aprender a contar só consigo. Aprendeu que a vida é risco, é controle, é limite, é medo. No seu coração a vida é tão fantástica, tão fabulosa, que é uma pena não poder mostrar aos outros o que vê.


Ana é feia, é gorda, é excluída, é incapaz aos olhos da sociedade. Ninguém quer conhecer como ela é na verdade, como é por “dentro” e é uma pena, porque ela é incrível. E ela se amarra ao que é por dentro para sobreviver aos temporais que todos os dias enfrenta na vida.


Ana é gaga, é surda, tropeça a toda a hora, mas vocês precisam de a ouvir cantar, de ler a poesia que escreve, de a ouvir a contar histórias aos filhos, a amar os pais, a amar e a cuidar dos velhinhos do Lar onde trabalha. Anjo Ana.


Ana é você, sou eu, é a vizinha. Você é luz, é vida. Você é importante. Não se esconda, não se iniba, nem que viva a sua totalidade bem baixinho, quase em silêncio. Não esqueça de fazer o que veio fazer na vida. Pode demorar uma vida inteira, pode demorar um segundo.


Abra a porta, Ana. Se permita. O Mundo também é seu...

Ana Santos, professora, jornalista



"Conto de Mulher Adulta"


Sentada no banco do metro, Marta olha para o relógio. É tarde, não costuma regressar a casa a estas horas. Se soubesse, de antemão, que iria ficar na cidade para jantar, teria levado o carro.


A carruagem vai quase vazia, somente um jovem com fones nos ouvidos e um homem mais velho, que parece dormitar. Instintivamente, Marta fecha melhor o sobretudo e puxa-lhe as pontas para cobrir as pernas. Faltam três paragens para sair.


Com o máximo de descrição que consegue, retira as chaves de casa da carteira e guarda-as no bolso direito do casaco. Olha uma última vez para o telemóvel, seleciona o contacto da vizinha, deixando-o aberto, e enfia o aparelho no bolso esquerdo. A próxima paragem é a sua. Levanta-se e vai para junto das portas. Quer ser a primeira a sair do metro.


Assim que as portas abrem, Marta desce para a plataforma e começa a caminhar em passo rápido, sem olhar para trás. A estação está deserta. Ouve passos atrás de si, mas obriga-se a prosseguir sem dar sinal de alarme. Chegando à rua, contorna as escadas e, de soslaio, parece-lhe distinguir a silhueta de um homem subindo na sua direção.


Uma onda de pavor percorre-lhe o corpo. Olha em redor e, apesar dos candeeiros acesos, a iluminação é fraca. Não se veem quaisquer transeuntes e só a esparsos intervalos passa uma viatura.


São apenas dois quarteirões de distância até ao seu prédio. Estuga o passo e aperta com força a chave na mão direita. Aprendeu que, se tiver de se defender, a chave pode ser uma arma preciosa. Ouve agora, claramente, os passos atrás de si e percebe que se aproximam. Resiste à tentação de começar a correr. Sabe que isso poderia servir de gatilho para o seu perseguidor. Um carro passa na rua e ela sente os passos do homem abrandarem, face à luz dos faróis. Aproveita essa vantagem e acelera um bocadinho o andar.


Já só falta um quarteirão. Vê, ao longe, o alpendre do seu prédio. Um súbito restolhar assusta-a e deixa escapar um gritinho. Um gato malhado salta de um vão de escada. O homem está agora mais perto, consegue ouvir-lhe a respiração. O coração de Marta bate tão forte que ela tem a certeza que ecoa na rua.


Às apalpadelas, escolhe a chave da entrada, entre o molho que tem no bolso. Espera não se enganar. Percebe que esse erro pode custar-lhe segundos que não tem. Está a duas portas da sua. Aperta o telemóvel com a outra mão. Ouve o homem sussurrar:


- Para quê tanta pressa? Gostas de rapidinhas?


Tem os olhos cegos pelas lágrimas, o pânico apodera-se totalmente dela. Não sabe como chega até à porta, nem como consegue enfiar a chave na fechadura. Tudo acontece demasiado rápido, sem que ela tenha consciência. A luz do átrio acende-se, porque é automática, e talvez isso dissuada o homem de forçar a entrada. Fecha a porta atrás de si e volta-se, aterrada, para ver através do vidro.


O homem sorri, piscando-lhe o olho e, arrogante, segue o seu caminho.


Marta sobe as escadas agarrando-se com força ao corrimão, pois tem medo que as pernas cedam. Entra em casa e fecha a porta atrás de si, dando duas voltas à fechadura. Só então. Só então se permite sentir. Um grito rouco sai-lhe da garganta enquanto cai de joelhos e esmurra repetidamente o chão. Tem a cara coberta de lágrimas. Treme de revolta, de frustração. Devia sentir-se grata, porque chegou a casa bem. Mas o que sente é uma raiva imensa por estes homens que, com um sorriso arrogante, passam por uma mulher arremessando-a contra o chão.

Cláudia Quaresma, convidada

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