2 Contos: “É O CARA QUE ATRAI!” e “As travessias”
- portalbuglatino
- há 5 dias
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Conto “É O CARA QUE ATRAI!”
Havia uma personagem de Chico Anysio que se chamava “Seu Pantaleão”. Dizer que mentia era pouco – meu Deus, acho que foi ele quem criou o conceito de pós verdade e fake news porque bastava o bichinho abrir a boca pra sair mentira. No curso da história estamos tendo uma “over dose” de mentirosos ultimamente, mas o Chico intuía que daria samba criar um ultra mentiroso e um politico ultra antipobre – o deputado Justo Veríssimo.
Com uns 20 anos de idade, eu tive que entender – e conviver – com o Seu Pantaleão da minha rua. Nós o chamávamos de Pantalemão – ele era loiro, no Rio de Janeiro – lógico que virou Alemão – como era um loquaz mentiroso – virou “Pantalemão”.
Era “campeão de moto”. Apenas, naquele momento, estava sem pilotar porque seu pai tinha resolvido implicar com ele pilotar sem carteira. Mas corria assim mesmo. Eu, que tinha minha bike super antiga abandonada no porão da minha avó, tendo que engolir a moto, a corrida, o campeonato, a descida do Alto da Boa Vista.
Um dia, alguém acreditou no Pantalemão e lhe emprestou a moto. Que rescaldo! Todo mundo chamou o cara de doido, maluco!
Mas foi pior: o Alemão caiu de moto. Tombo grave. Grave mesmo. Perdeu a perna. Acabou a graça, a mentira, a brincadeira. Acabou a vontade de ir ao hospital, visitar o menino. O que a gente ia dizer?
Vamos para o tempo de hoje. Lá estava o Eduardo. Mentindo de novo, claro. Cara aumentativo, superlativo, exagerado. O Brasil só andaria se ele deixasse. Arrumou um amigo fortão – o Donald – gringo laranjão que amava fazer bullying nos mais fracos. Colou com o gringo e começou a folgar. Todo dia vinha provocar quem estava quieto. “Tem que me obedecer porque o Donald tem amigos que gostam de bater, vocês vão ver o que ele vai fazer se vocês não me obedecerem, eu quero estudar sem ir à escola, eu quero trabalhar sem ir ao trabalho, eu quero ajudar, prejudicando todo mundo”. “E tem que me engolir”!
Pois na nossa turma, tinha menino meio baixola, que se dava com todo mundo, mas não aceitava desaforo de ninguém. Mandou o garoto lamber o chão e o moleque só franziu a testa. “Nem te ligo, abacaxi”! chamou pra porrada, provocou, disse que ia ter gente esperando ela na saída, que ele não ia ter sossego pra andar na rua. Tudo isso ele falou e o baixola só olhou de ladinho. Não fez nada. Disse que não queria briga com ninguém, mas não suportava gente folgada. Veio a turma do “deixa disso” – manda uma carta pra Donald! Nada. O baixola nem se mexeu. Só dizia que não queria briga, mas não ia também se arrastar no chão por ninguém.
Passou o tempo. E não é que o Donald começou a precisar de uns brinquedinhos e lanchinhos que só baixola tinha? Daí pegaram as mentiras do Eduardo. Os exageros, aumentativos e superlativos. Ele não era o fortão, afinal. Apenas achou que poderia enganar fortões e baixolas ao mesmo tempo.
Não deu certo. Foi perdendo tudo, até que perdeu a saúde, a verdade, a realidade, os fatos, a coerência. Era uma conversa sem perna, igualzinho ao Pantalemão.
Triste. Na hora que você tá mentindo, não se pensa nisso. Mas minha mãe sempre dizia que mentira tinha perna curta. No caso dos meninos, a mentira até perdeu uma perna.
E agora?
Agora é solidão e silêncio. Se quiser.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “As travessias”
Temos desejos.
Oh, se temos.
Mas temos medo.
Oh, se temos.
No meio destes polos tão distantes, temos a vida, esse rio que atravessamos.
Ou não.
Nunca saberemos.
Nunca saberemos?
Ana desejou muito desde menina. Sempre que ficava sozinha tinha um mundo imaginário muito próprio. Como cada um dos seres humanos que partilham com ela este planeta. Alguns desses desejos escreveu num diário. Depois rasgou as folhas. Depois voltou a escrever. Sua mente circulava entre a sensação que tudo era possível e a sensação de enorme vergonha e ousadia por desejar coisas que não eram para a sua casta. Ouvia comentários de adultos que a desanimavam ou animavam. O rio subia e descia a maré muito rapidamente. Como fazer essa travessia? Quando? O que seria que estava do lado de lá? Do lado onde ninguém ainda tinha estado?
Seu mundo paralelo a acompanhou sempre. Foi parecendo, cada vez mais, apenas um mundo paralelo onde tudo parecia possível e impossível ao mesmo tempo. Era e não era. E enquanto isso a vida terrestre ia empurrando para as obrigações acadêmicas, profissionais, pessoais.
Nesse dia, naquele preciso instante, algo aconteceu por dentro de Ana. Seria uma explosão? Seria uma travessia desse rio? Medo? Ou tudo junto?
Tudo o que desejou, que escreveu nos diários, que apagou, que voltou a escrever. Tudo o que sabia que seria impossível na realidade, mas que desejava tremendamente construía no seu mundo paralelo. Tudo, o pouco que se habituou a aceitar no lugar que ocupava. Tudo o que era normalizado e destinado a uma menina conotada como “maria rapaz”, que apenas gostava de subir em árvores e jogar futebol – mas que além disso, cumpria todas as tarefas e obrigações na escola, e o fazia com boas notas. Tudo, tudo, tudo, naquele preciso momento se transformou numa explosão na sua cabeça. Se transformou numa possibilidade, numa realidade. O que escreveu no seu diário aos 11 anos, o desejo mais louco e mais impossível, estava se desenhando na sua frente.
O ônibus circulando na pista em direção aquele enorme avião. Começou a suar, tirou o casaco. Seu coração parecia que queria sair pela boca. Perguntava-se o que lhe estava a acontecer. Não era problema viajar de avião, não era problema fazer coisas diferentes, não era problema ser feliz e ter direito a coisas boas. Então o que era? Ia morrer? Foi tanto desejo assumido como impossível, que agora acontecendo, era demais para as suas emoções?
Não era o avião enorme. Era a ideia de que ia entrar num avião, para viajar por 13 horas, até Osaka no Japão. E que dali a uns dias iria viajar para Pequim, na China. Lugares que nunca teria dinheiro para ir. E se tivesse o dinheiro, não o gastaria nessas viagens porque ele era necessário para comprar carro, comprar apartamento, ajudar a família. Outro mundo, outra casta, outro rio.
Mas era, para além disso tudo, o seu mundo paralelo cruzando com seu mundo real. Era ver acontecer. Sentir acontecer. Perceber que para além de todas as probabilidades, do que outros diziam que deveria ser, do que o mundo abriu ou fechou, estava acontecendo o que tanto desejou. A travessia desejada e inesperada. Sabia bem que nada dependia dela, para além do seu esforço, desejo e esperança. De se colocar sempre pronta para o que desejava. Mas nada teria acontecido sem algumas pessoas, pessoas que também estavam na luta pela sua travessia, travessia que se misturava com a sua. Pessoas bondosas. Pessoas que viam suas capacidades.
- Ana? Estás bem? – Cristina que estava perto dela e viu seu súbito calor, percebeu o impacto, percebeu que Ana tinha finalmente percebido que estava entrando de cabeça no seu sonho. Olhava Ana sorrindo.
- Cristina, de repente fiquei com um calor quando vi que tudo está a acontecer...
- Sei como é...já passei por esse momento. Faz a travessia Ana, respira e te prepara porque tem muito trabalho para fazer aqui deste lado. Não é só atravessar. Durante a viagem de 13 horas vamos aproveitar para reunir, para organizar as coisas.
- Tá bom, tá bom...
- Mas também vai dar para dormir e para te contar coisas engraçadas que vamos poder viver.
- Tá bom...
- Benvinda ao novo mundo...
Ana Santos, professora, jornalista
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