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2 Contos sobre "Senhores"


Conto “NÃO É COMIGO NÃO!”

- Ah, rapaz... A Bahia tem umas frases... Descompreendido, por exemplo, é o cara que faz coisas sem justificativa, incompreensíveis – para o mal. O marido espanca a mulher – é um descompreendido. O menino arma confusão na escola – é um descompreendido.

- Mas: “NÃO É COMIGO NÃO” é perfeita - e com mil e uma utilidades. O cara disse que quem tomasse vacina poderia virar jacaré. Ninguém virou bicho nenhum, mas centenas de milhares que acreditaram nele, morreram. “NÃO É COMIGO NÃO”! Alguém mandou o alto escalão do governo passado pegar uma caixa de joias que estava “presa” na Receita Federal - “NÃO É COMIGO NÃO”! E fulano diz que recebeu a ordem de alguém, que afirma que não deu ordem nenhuma, que inclusive nem sabia das joias – embora tenha pedido pra “coisa”, “caixa”, “presente”, “aquilo” fosse recuperado em oito ocasiões diferentes.

A coisa está mal feita? “NÃO É COMIGO NÃO”! Alguém flagrou? “NÃO É COMIGO NÃO”! Você deveria ter feito o que não fez por má vontade, preguiça, vingança? “NÃO É COMIGO NÃO”!

Relanceou os olhos pela calçada – sempre estreita, mesmo quando há espaço para que ela seja mais larga. Dizem os antigos, que era uma forma de diferenciar os que poderiam andar sobre a calçada, dos que que só tinham o direito de andar beirando a sarjeta – escravizados e senhores.

- Mas estamos em 2023! Não seria mais do que hora das calçadas de Salvador comportarem seus cidadãos, igualmente? Mais largas? Sem poste no meio do pouco espaço que resta? Dando espaço ao pedestre e não obrigando-nos a furtar o espaço das bicicletas? “NÃO É COMIGO NÃO”! E segue como está, como era.

- Bom dia!

- Como vai?

E ali, descendo o Calabar como todos os dias, um lugar sem calçada nenhuma, mas repleto de pessoas que ela conhecia tão bem, lá estava a constatação de que os políticos precisavam deixar de ser “descompreendidos” e aceitarem a todos como parte da geração que construiu seu direito a ter e andar em calçadas; a caminhar sem medo de ser atropelado pelos carros nas ruas e vielas estreitas da cidade; de um exercício comum no mundo e que aqui era incrivelmente difícil – o de caminhar sobre um lugar seguro, para pedestres, sem disputar espaço com carro nenhum.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “A vida te dá o que tentas”

Foco. É importante. Mas o mundo envia umas mensagens misturadas e difíceis de entender por vezes. Porque o mundo não gosta quando as pessoas decidem fazer coisas variadas? Sempre ouço que preciso me concentrar numa coisa.

- A senhora diz que sabe fazer muita coisa. Isso não é a melhor forma. Vão achar que não sabe fazer nada bem. Precisa escolher, se dedicar só a isso e dizer que faz uma coisa. É assim o mercado do trabalho.

Quantas e quantas vezes ouvi isto? Demasiadas. Eu tenho de deixar de ser quem quero ser, deixar de desenvolver o que sei, o que posso fazer, porque o mercado de trabalho, segundo algumas pessoas “especialistas em marketing”, diz que é assim?

Eu nunca segui ninguém. Nunca segui nenhuma moda. O que sei aprendi com outros, sim, mas sempre senti uma necessidade de fazer do jeito que eu sentia que era a melhor forma. Existe algo em mim que me empurra para fazer do meu jeito. Detesto cópias. Isso te abafa o pessoal e te desenvolve o automático. É intragável para mim. Talvez porque desde menina eu nunca tive as condições perfeitas para alcançar o que decidia ou o que desejava. Jogava voleibol com sapatilhas Sanjo que na época eram os tênis mais baratos e muita sorte poder ter uns. Os mesmos que levava para a escola também. E estava bem feliz. Tinha colegas que não tinham nem sapatilhas, nem sapatos. Tinha colegas que tinham sapatilhas diferentes em cada treino. São essas condições perfeitas que falo. Na faculdade mal sabia onde eram os locais das aulas, onde eram as cantinas, onde se tiravam fotocópias, onde se apanhava a camionete – fui muito gozada por dizer camionete em vez de autocarro e agora não posso esquecer de dizer ônibus – e enquanto isso tinha colegas que estudavam por livros que eu nem sonhava, conheciam os professores, alguns eram até filhos de professores, etc. O dinheiro que meu pai me dava todo o domingo de noite, com imenso sacrifício, tinha de dar para tudo – comida, fotocópias, transportes, alguma necessidade – enquanto outros colegas tinham mesadas para curtir a vida, para férias, para o que quisessem, que eram o triplo ou mais do que eu tinha para viver. Nada para eles era estranho, diferente, inacessível. E mesmo assim, eu, como muitos e muitas, fui caminhando, descobrindo outras formas, tentando aprender com as condições que tinha. E fiz, fizemos, fazemos, coisas inacreditáveis nas condições que tive, temos. Isso aconteceu tanto na minha vida que me ensinou que não interessa que condições tens, interessa o que desejas e a energia e tempo que aceitas entregar para conseguires. Recusei muitas coisas apetecíveis para a maioria das pessoas. Mas para mim não foram recusas, foram limpezas. Não senti que perdi ao recusá-las, senti que ficava mais leve em direção ao que me chamava. E talvez também por isso a vida me abriu portas para conseguir coisas que poucas pessoas conseguiram. Porque eu busco o que eu quero não o que os outros querem que eu queira ou o que acham que é acertado para mim. Talvez por isso meus vizinhos estranharam eu caminhar um quilómetro carregando duas varas de bambu de 4 metros cada uma, uma em cada mão – uma mulher de 56 anos num bairro de elite onde quem faz esse tipo de coisa é homem, negro, da periferia. Talvez por isso o mundo da educação e do esporte daqui da cidade ainda não tenha entendido como uma mulher com meu ar conseguiu o que nenhum conseguiu quando eles é que são os campeões, todos malhados e com voz grossa. Talvez por isso as minhas vizinhas mais “enriquecidas” passaram a me tratar como cozinheira – “afinal ela é cozinheira”- quando eu coloquei um aviso no portão dizendo que fazia comida portuguesa caseira. Algo que ninguém aqui sabe fazer e ninguém faz nem ideia do que isso significa. Mas não abrem a porta porque não é como eles decidiram que devia ser, seja lá o que for e seja lá o que isso significa...

“Afinal ela é cozinheira, afinal ela é professora, afinal ela é jornalista, afinal ela é pobre, afinal ela é rica, afinal quem é ela?”

Quem é ela? Quem és Ana? Quem sou? Mais uma pessoa que se habituou a ter poucas condições para fazer o que quer mas que nunca desiste. Que não muda nem com os olhares de desprezo, de gozo, de humilhação, de crítica. Nem com as portas fechadas.

É que a vida tem o hábito de ser gentil com quem faz o seu caminho independentemente do que os outros pensam. A vida vem e dá sempre uma mão. Ela molda teu olhar, ela te ilumina o caminho. E quando você dá conta está rodeada de pessoas interessantes, boas, talentosas e até – imaginem vocês – desejadas pelos que seguem as regras. E você não fez nada mais do que seguir seu coração, seu instinto.

Sabe que é muito falada, comentada, criticada, motivo de chacota e risos vários. Mas o que isso importa? Nada. O que importa e muito é que aos poucos você vai encontrando os que são como você, os que entendem você, os que sofreram como você, os que também encontraram as portas fechadas e fizeram suas próprias portas.

A porta fechada e quem a fecha tem uma mensagem muito clara: “não venha que você não terá”. Só que as pessoas acham que queremos algo que não queremos e isso é um incentivo para descobrir outras formas. Sempre existe outra forma. Sempre existe uma saída. Sempre existe uma resposta. E é divertido. É instigante. É animador. Você devia experimentar. É bem mais interessante do que fechar portas. Que deve ser um “saco”.

- O que fez na vida?

- Eu? Eu fechei portas para as pessoas não fazerem o que querem.

- Viu? Esquisito não é?

Ou...

- O que fez na vida?

- Eu procurei portas abertas, mas elas se fechavam todas e eu aceitei ser o que todos me empurraram para ser.

- argh...

Quando me vir varrendo a calçada, cortando a grama, carregando bambu, fazendo comida portuguesa caseira, não me subestime. Nem subestime os meus amigos que carregam água, gás, etc. Somos capazes de coisas que você nem imagina. Mas que devia imaginar e tentar em vez de ficar fechando portas. Porque não experimenta? É que as portas ficam tão bem encostadas ou abertas. Entra luz. Luz.

Bom, está na hora de fazer um intervalo na escrita e desta vez acho que vou limpar o banheiro. E você?

Ana Santos, professora, jornalista

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