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2 Contos sobre o futuro do planeta

Conto “EBULIÇÃO, FERVEÇÃO E FAMÍLIA”
Lançando os olhos por sobre o morro, ela via a chuva caindo na sua rua, enquanto recebia noticias do fogo na Europa. “Risco Exponencial, ebulição climática global, ferveção” seriam nomes que entrariam na vida das pessoas:
- Novas palavras...
Não conseguia ver qualquer resposta num futuro próximo e entre plásticos, isopores, poliuretanos e todos os poluentes petroquímicos que adotamos para o nosso dia a dia, lá estavam todos “os terríveis” amontoados.
- Falamos de energia limpa, mas quem carrega todas as turbinas são os caminhões – à diesel! Não vamos conseguir nos livrar de combustível fóssil tão cedo e não temos o que colocar em seu lugar... E ele está já em linha descendente de produção...
Num dado momento, a visão terrível e tenebrosa das notícias da Grécia e Itália, a água do mar esquentando, incêndios, El Niño e a chuva torrencial que já durava dias, se misturou ao sino tocando no seu portão: tim, tim, tim!
Era seu afilhado. Vinha aprender a cozinhar com a mesma energia feliz que os tinha aproximado desde que ele era um bebê de covinhas e dizia à mãe:
- Pode ir que eu e minha Dinda vamos conversar!
Veio aprender a fazer arroz, teve uma explicação de como fazer iogurte e treinou uma farofa de cebola para comer com feijão. Uma comida de casa, simples, mas que requer “a mão certa”, a técnica que faz o arroz ficar soltinho, a farofa torradinha. “De amor”, como ele logo nomeou.
Dezenove anos e o papo flui. Nada de estranhamentos adolescentes. Apenas somos nós mesmos desde que ele nasceu e dá certo.
Lá no mundo, a poluição continua, a nossa incapacidade de compreender o Brasil também, a desordem, os crimes, a corrupção e a impaciência geral entre as pessoas. Mas naqueles pequenos parênteses de tempo, sempre é natural falarmos. Antes era do Homem Aranha e agora é de política, meio ambiente, universidade, engenharia – o nosso falar ultrapassa todas as barreiras.
Já emendamos com a “dinda gringa emprestada” a falar de sopas e coisas deliciosas para ensinar nesse inverno, bruschettas, lanchinhos, paz de espírito. E depois cantamos, ele no violão e nós na voz, escolhemos nossas músicas especiais, vimos a chuva, tomamos sorvete. Na saída, o compromisso de voltar para novas experiências – culinárias, mas especialmente verbais. Família é assim, estranho... Grandes momentos nascem de coisas comuns, de pequenos detalhes perdidos na ebulição de expectativas, que é uma vida.
Sofremos risco exponencial de morrer, o planeta não consegue mais se defender de nossa compulsão destrutiva, há estresse demais, medo e depressão demais, mas naquele momento, diante da mudança de parâmetro do mundo, de aquecimento global para exponencialmente em ebulição, os três ficaram juntos, vivendo apenas, cozinhando experiências e sendo normalmente felizes. Estranhamente felizes, num mundo em ebulição que continua sem ver ninguém ao seu redor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Medalha Olímpica”
- Não esquece a lancheira antes de sair para a Escola.
- Mãe isso não é lancheira.
- É sim. Já falamos sobre isso.
- Mãe, as minhas colegas vão todas rir de mim. Todas levam as lancheiras da Barbie, da Pequena Sereia, da Pocahontas, da Bela Adormecida. Porque eu tenho de levar meu pão com queijo e a maçã, embrulhados em guardanapos de pano? E porque a minha água precisa ir numa garrafa de vidro? É mais pesada do que as de plástico.
- Já falamos Ana. Não podemos mais utilizar plásticos na comida. Não podemos utilizar mais plásticos na água. Filha, você não ama a tartaruga? O albatroz? Os animais em geral? O Planeta? A natureza? Você aceitou lutar por um mundo melhor. Para isso, precisamos parar de fazer muitas coisas que fazíamos. E o plástico em contacto com a comida é um deles.
- Entendo Mãe, mas você não entende o quanto eu vou ser cancelada. Ainda por cima porque eu não compro comida nos lugares que todas compram. Eu não gosto daquelas comidas, mas elas dão gargalhadas muito altas quando olham meu pão e meu queijo feito em casa, por você e por mim.
Ana lá foi, muito rabugenta, mas foi.
O celular da mãe de Ana tocou.
- Boa tarde...
- Boa tarde. Fala a professora da Ana. Falo com a Mãe?
- Sim, sou eu. Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu. Eu sou a nova professora da Ana e das suas colegas e fiquei muito feliz por ver que pelo menos uma menina está mudando radicalmente seus comportamentos, pensando no futuro do planeta. Infelizmente Ana foi ridicularizada pelas colegas, mas eu interrompi a situação e expliquei – tentei explicar – que Ana e sua família estão certas. E que em vez de se rirem, deviam tentar fazer o mesmo. Pedi para falarem com seus pais. Sei que provavelmente terei alguma revolta, alguma contestação, mas desejo que entendam. Estou ligando para lhe agradecer pelo que está a fazer e para lhe pedir que continue. E se puder ensinar-me a receita do pão e do queijo, eu iria ficar muito feliz.
- Obrigada. As pessoas estão muito distraídas, fazendo contas para um futuro que não vai existir. Cada dia, atualmente, é realmente uma dádiva. Ana briga porque quer fazer o que as colegas fazem, mas ao mesmo tempo ela entende que faz coisas boas. Nunca fica doente, aprende coisas novas em casa todos os dias, coloco-lhe problemas permanentemente e lhe peço soluções. Umas vezes peço soluções rápidas, como se de repente tivéssemos de fugir de uma inundação ou incêndio. Outras vezes peço-lhe soluções globais, perguntando-lhe o que ela poderia fazer se de repente a população de uma cidade ficasse dependente dela, apenas de Ana e do que ela sabe? O que ela faria, o que ela sabe e o que ela deseja saber para conseguir ajudar da melhor forma possível? Por vezes diz-me que é muito nova para essas brincadeiras que eu faço – chama brincadeiras. Mas eu já lhe falei que não existe idade para a sobrevivência, que ela precisa aprender, e aprender rápido e diferenciado, antes de alguma situação a apanhar desprevenida. Por último – desculpe por estar a falar muito – contei-lhe que Michael Phelps, o maior nadador de todos os tempos, se preparava ao pormenor para vencer e uma das coisas que fazia e que foi decisiva foi imaginar a situação de competição, todos os pormenores, todas as etapas, todos os momentos e imaginar três possibilidades: imaginar tudo isso perfeito e vencer; imaginar tudo isso cheio de problemas, atrasos, desorganizações, etc, e vencer, e por último, imaginar tudo e ao fazê-lo imaginar situações inusitadas, inacreditáveis, problemas inimagináveis, resolvê-los e vencer. De alguma forma tento ensinar isso à Ana. Não para vencer medalhas olímpicas, mas para sobreviver.
- Que lindo! Está ensinando-a a vencer a maior e mais importante medalha. Vou tentar começar a fazer isso comigo, com meus familiares e com as outras alunas. Será que podia vir um dia à Escola para ensinar isso às alunas, aos pais e aos funcionários da Escola? Todos precisam tanto...
- Claro! Vou quando quiser. Amanhã mesmo se precisar.
- Sério? Então amanhã a aguardo. Amei esta conversa. Obrigada. 8h está bem para si?
- Perfeito. Até amanhã então.
Ana Santos, professora, jornalista