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2 Contos: “ASSÉDIO E PODER” e “Isso é que é ter sorte”

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    portalbuglatino
  • há 11 minutos
  • 5 min de leitura
Felícia Leirner
Felícia Leirner


Conto “ASSÉDIO E PODER”

              Ela suspirou, ouvindo ainda aquele ronco imaginário do seu lado, na cama. Nem acreditava que tinha conseguido se livrar daquele homem. As relações de poder acabam sendo uma forma de intoxicação emocional e ela ainda não se sentia curada. Tinha terminado tudo, se protegeu usando um lugar público, foi objetiva, clara, não contou seu processo de decisão, apenas terminou e foi para a casa de uma amiga, previamente avisada. Tudo para que ele não soubesse automaticamente onde ela estaria. Aliás, foi por isso que não escolheu a casa de sua mãe. E se ele fosse até lá?

Não chegou a ser espancada fisicamente, mas seu espírito estava em pedacinhos. Ouvir que não presta, que é burra, que é uma vagabunda que mostra o corpo pra todo mundo, ser “conduzida” pelo braço como se fosse uma criança malcriada apenas por discordar era humilhação, dor e desespero – e medo, muito medo!

Ligou a TV, de madrugada. Queria esvaziar sua cabeça daquele tormento permanente. Assédio, pra ela, era uma das formas mais vis de exercício de poder. Mas... Apareceu o Trump com aquela cara de boneca inflável, assediando o Brasil, como se nós fôssemos frágeis...

Tudo lhe voltou à mente: as humilhações, os constrangimentos. E também as pessoas maravilhosas que lhe cochichavam apoio, davam conselhos, criavam situações de proteção, lhe estendiam mãos generosas. Olhando para aquele homem de aspecto horroroso, com aquela boca... meu Deus, como alguém poderia debater com aquele Trump sem se sentir embaraçada por seu jeito de falar?

- Eu duvido que o Brasil não vá inteiro pra cima dele! Ele pensa que nós somos quem? Aqui tem justiça!

E estava na rua em São Paulo na primeira grande manifestação, gritando no meio do povo. Fazia isso com o útero. Os anos de sofrimento, as lágrimas – tudo lhe vinha à mente, ao mesmo tempo. Era insuportável lidar com assédio moral, ameaça e bullying de novo, sem se sentir muito mais forte. Pronta para a luta, quantas vezes fosse necessário.

- Sem anistia! Sem anistia!

Encontrou “amigas totalmente desconhecidas”, se juntou a elas e, pela primeira vez em muitos anos, se sentiu completa, feliz.

- Livre. Obrigada Universo! Livre! – gritou em lágrimas – de alegria dessa vez.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Isso é que é ter sorte”

Viveu tempos em que ia para a escola sozinha, caminhando por ruas que se chamavam caminhos – ruas de terra e pedra - levando na sua mochila um caderno e um livro e seu pão com marmelada ou geleia de marmelo.

Tempos em que ia para a escola e o lanche era dado pela escola – pão com mortadela e leite com chocolate. Lembra dos banheiros, sem porta, sem água, sem papel. Fazia um enorme esforço para não ter de os utilizar.

Tempos em que ia para a escola de trem com os colegas – estranhamente todos rapazes – mais dez minutos de caminhada. No recreio, jogava o “Jogo do Prego” ou “Jogo do Espeta”. As aulas que melhor recorda eram as de música e as de desenho. Aulas onde os sons tinham importância e lugar. Aprendeu a escutar e a dar sentido aos sons: sons da rua, das casas, sons da vida, e isso lhe pareceu muito belo. Uma professora substituta, por dez aulas, que lhe mudou o mundo. As aulas de desenho porque podiam sair da escola, escolher um edifício para desenhar e ficar sentados, por quase duas horas, apenas desenhando. Não existia o estresse de ir ao quadro e ser humilhada se falhasse, não tinha a vergonha de ter de falar publicamente que não sabia. Desenhar, fazer o seu melhor, no silêncio e na paz. Achava aquilo tão maravilhoso, tão maravilhoso, tão maravilhoso.

Tempos em que ia de trem para a escola, depois 30 minutos caminhando. Pertenceu a uma turma durante 3 anos onde viu pela primeira vez pessoas fumando maconha, roubando, sendo indisciplinadas, agressivas, desinteressadas pela vida, pelos outros. Onde reinava o interesse em estragar, atrapalhar, revoltar contra tudo e todos. Uns saíam de casa, outros rasgavam folhas do livro de ponto, outros traficavam. Um caos na turma, mas fora dela era o lugar onde se apaixonou mais ainda pelo esporte. Onde também começou a aprender que mesmo o esporte que mais amava exigia dela dor e sacrifício. Levava fruta e um copo de plástico cheio de leite com chocolate, feito por ela em casa.

Saiu de casa para ir para a faculdade na cidade grande com 18 anos e perdeu o contacto com todos os amigos. Foi estranho passar a estar com pessoas que não a conheciam. Cidade grande e desconhecida fez com que ela caminhasse muito para ir para os lugares, para cada local da faculdade, distribuída pelos quatro cantos. Pouco dinheiro, muita fome. Seu pão com geleia de marmelo, com marmelada, cenoura descascada, tudo valia para matar a fome nos intervalos entre as aulas. Ficava babando, olhando as vitrines com tantas coisas deliciosas.

Nos últimos anos da faculdade tirou a carta de carro. Começou a dar aulas e com um carro comprado em segunda mão, com mais dinheiro, começou a lanchar nos lugares de coisas gostosas.

Depois um ano de trabalho num outro lugar com moto. Ainda caminhava menos porque conseguia estacionar em frente dos lugares. Lanches mais gostosos ainda.

Depois, noutro lugar, o primeiro carro novo. Esse carro trouxe mais disponibilidade e mobilidade e com isso mais empregos. Mais dinheiro. Lanchar, mas também almoçar e jantar fora de casa. Começaram as fatias de pizza, os hamburgueres, os sorvetes, os gelados, os donuts, os mars, twix, tiras de milho, os jantares com amigos, com colegas, as festas recheadas de comida e bebida, os Carnavais, as Festas Juninas, os aniversários, os casamentos, os churrascos, as feijoadas, etc, etc. As férias para descansar a mente, mas onde descansava mais o corpo – que cada vez fazia menos.

Veio a barriga, aumentaram os triglicerídeos e o colesterol. A roupa com números maiores. Veio a procura por trabalhos perto de casa para ter mais tempo e mais “conforto”. Trabalhos mais burocráticos, em frente ao computador, em mesas de reuniões. A barriga aumentando, a bunda também, a cara ficando inchada, os dedos das mãos e dos pés também. Cada vez mais medicamentos. Dores nas articulações, dores ao levantar, ao sentar, ao deitar. Insônia. Impaciência. Irritação. Incómodos. Insatisfação. Desânimo. Como chegou a este lugar?

Teve tanta dificuldade em menina, não tinha possibilidade de nada, quando começou a ter dinheiro, se empacotou de tudo, sem perceber o que fez a si própria.

Um dia, uma virose. Braba. Tratou, mas durante a recuperação, perdeu uns bons quilos. Dali a uns meses, virose de novo. Mais uns quilos desapareceram. Durante uns dois ou três anos foi tendo viroses, perdendo peso. Um dia o médico disse que era melhor uns exames para saber porque isso tudo acontecia. Ficou com medo de morrer. Tratou tão mal seu corpo que talvez não tivesse mais direito a viver. Fez os exames. O médico disse que ela tinha intolerância à lactose e ao glúten e que isso significava que lhe tinha saído a sorte grande. Ela não compreendeu. O médico explicou que com esses problemas ela vai passar a ter cuidados com o que come, quanto come e que isso a vai deixar magra e saudável para o resto da sua vida. Uma forma do corpo não a deixar mais engordar, nem fazer coisas erradas, muito menos se envenenar. Uma forma de deixar de comer mal. Acabou. Mas uma das frases que mais gostou foi quando o médico disse que ela ia voltar a comer como comia em menina e desta vez iria perceber que não era mau comer pouco e bem, comer em casa. Lembrou logo do seu saudoso pão com marmelada ou geleia de marmelo.

Ana Santos, professora, jornalista



Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.


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