2 Contos: “SINTONIZANDO A HORA DO BRASIL” e “66 anos”
- portalbuglatino
- 21 de jun.
- 6 min de leitura

Conto “SINTONIZANDO A HORA DO BRASIL”
Se sentia num barquinho em alto mar, com aquelas ondas enormes, de maremoto mesmo – sua cabeça não se encaixava nas coisas que as pessoas tentavam lhe empurrar como verdade. Como era possível tanta coisa conflitante ser verdade? A internet parecia ser uma terra de loucos – de um lado, diziam que o governo aumentou o imposto; do outro lado, diziam que o governo tinha aumentado o imposto – mas só dos muito ricos.
- Quem será que entra na definição de muito ricos? Muuuito ricos ganham quanto?
Saiu atrás de alguém que lhe explicasse a matemática da coisa, os números. Um rico ganha 10 mil? 15 mil? 8 mil? Não. Uma pessoa muuuito rica ganha mais de 1 milhão por ano. Ficou perplexa: Mais de 1milhão, dava assim uns 85 mil por mês. Ela não ganhava nem perto de 85 mil num ano de trabalho...
Fuçou mais. Agora queria saber de tudo. Se sentia num frenesi estranho, parecido de quando desconfiou que seu ex a estivesse traindo – e estava! – ela era incrível com essas sensações.
Um deputado, um senador, ganhava ali perto de 46 mil cada mês, mas cada gabinete mexia com centenas de milhares de reais. Todos os meses. Descobriu que cada gabinete era como uma empresa, tinha funcionários, assessores, serviços de correios, telefone, internet, aparelhos celulares - até roupas, imagine – até transporte, casa, hotel, apartamento, viagens, avião, comida. Ela tinha que pagar aquilo, para todos. Sem titubear, sem reclamação – aquilo saía do imposto.
- Quem paga imposto então... paga por tudo o que eles têm.
Lembrou dos sermões que ouvia na igreja. Fechou os olhos e viu o pastor dizendo que qualquer pessoa podia comprar a pedra que acertou Golias – e tinha gente que pagava qualquer preço pra ter a pedra. Mas – o que ela faria com essa pedra? Não seria mais útil ter mais comida e talvez conseguir ajudar a vizinha que estava desempregada?
Sua cabeça latejava, sem saber que decisão deveria tomar. Se o voto era secreto por que tinha tanta gente querendo dar palpite no voto dela? Mas vinha palpite de todo lado: na igreja, no mercado onde trabalhava, em casa, na vizinhança - os tais deputados se lembravam muito bem de quem ela era na época de votação, mas não aceitavam votar a favor do imposto dos ricos. Ela foi perguntar se o dono do mercadinho onde ela trabalhava ia pagar o tal imposto – não. Não era rico o suficiente.
- Como se ganha tanto dinheiro assim? Ainda mais dinheiro que o meu chefe...
Soube do aumento da luz e seu mundo caiu. Então os tais deputados tinham votado pra aumentar o custo da energia porque os usineiros – os tais, de 1 milhão por ano – pediram. Mas o usineiro tem só um votinho por cada eleição. Em compensação, o bairro dela... Sua cabeça dava mil voltas:
- Tem muito mais pobre do que rico e os deputados preferem votar com os ricos? Tem coisa! Na hora de eleger, tem que ser com a ajuda dos pobres, gente! Olhou no Google: no Brasil tinha 211 milhões de pessoas comuns, como ela.
- E de ricos?
Veio o Google: 141 mil. Ela desacreditou:
- Não seriam 141 milhões?
Não. Eram mesmo apenas 141 mil brasileiros muito ricos.
- Como os deputados tinham tido coragem de votar contra o Brasil inteiro duas vezes na mesma semana? E como as pessoas não se uniam pra nunca mais votarem naquelas pessoas?
Ficou chocada: pouca gente sabia.
- Esse era o segredo! Jogavam a nossa cabeça de um lado para o outro, tanto que ela sentia como se estivesse recebendo pauladas. Bastava ela defender uma pessoa e lá vinha o palavrão, a grosseria. Era coisa certa.
Passou a investigar tudo por si mesma – não acreditava só porque alguém tinha dito. Não funcionava mais. O tempo foi passando e ela entendeu a coisa da cidadania – e não era só obedecer, mas descobrir. Era se ver, mas ver os outros também. Passou a votar melhor, a exigir. Passou a estudar os candidatos. Nunca mais se deixou enganar e todos lhe pediam dicas, conselhos. Ficou famosa nas redes sociais, lhe ofereceram dinheiro para indicar candidatos – mas isso nunca. Não tinha frase, dinheiro, promessa. Respondia sempre:
- Acabou de se lascar comigo, excelência.
Virou vereadora. Eu mesma também votei nela!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “66 anos”
Tento imaginar o que será estar casado com alguém 66 anos. Acabei de sair de uma ressonância que demorou uma eternidade – 40 minutos. Uma eternidade para mim são 40 minutos. Logo nos primeiros minutos um gelo nos pés, nos dedos dos pés, nas pernas. Mesmo com o cobertor aquele ar frio entrava pelos lados, por baixo, pela mente. Depois as pernas começam a ter uns espasmos involuntários num corpo que não está aguentando a temperatura tão baixa. E o técnico logo avisa: “peço o favor de não se mexer”. Depois as mãos gelando. Depois o ombro direito dizendo que não dá mais para ficar naquela posição – o técnico vem e coloca mais uma almofada. Melhora consideravelmente. Acontece que começa a doer o outro ombro. 40 minutos. E, basta terminar o exame e sair daquela sala para o corpo aquecer e os ombros esquecerem de tudo o que gritaram na minha mente. 40 minutos.
Quantos 40 minutos fazem 66 anos?
Você se prepara, sabe que tem de ir em jejum, sabe que vai ficar imóvel num lugar um pouco claustrofóbico, que vai levar com um contraste, que antes precisa de passar por uma recepção demorada, com questionários e mais questionários, com aprovações do plano de saúde, com pessoas mais velhas passando na sua frente porque têm prioridade – e não adianta chegar mais cedo, marcar o exame na primeira hora do dia. Você escolhe um feriado ou um domingo porque informaram que são dias mais vazios, mas a sala está cheia – cheia de pessoas com prioridade. Como serão os 40 minutos de cada uma destas pessoas? Quantos 40 minutos tem cada uma já no seu currículo? Podíamos trocar “experiências de 40 minutos”, tipo: “as melhores férias com a minha mulher foram no Alentejo, uma maravilha, e as suas? Ui, as melhores foram quando ainda vivíamos com nossos sogros. Depois das crianças nascerem não tivemos mais condições para nada disso”. Lembro dos 40 minutos de uma prima porque ela falava que aquele barulho da ressonância a fazia pensar em barcos, em hélices de barcos, ou barcos enormes a motor passando junto do seu pequeno bote. Quando ouço esse barulho sempre recordo dela e sempre imagino os barcos, os botes, por vezes até imagino o Mississipi. Os 66 anos também têm recepção demorada? Gente que passa na frente com prioridade? A preparação é complicada? Como a colonoscopia? Tem contraste? A enfermeira coloca bem o acesso ou anda com a agulha em busca da sua veia? Chove? O frio faz ter espasmos? Os ombros doem? Se eu ouvir uma pessoa dizer que o seu casamento tem momentos como aquele “barulho da ressonância magnética” e que ela imagina que está viajando de barco com o marido, que é apenas barulho nada mais, isso me é útil?
Estou tão absorta nestes pensamentos que até choquei contra uma mulher ao virar a esquina.
- Desculpe, estava distraída
- Ana
- Helena
- Há quanto tempo não te vejo.
- Pois é... Tudo bem?
- Tudo
- E o António? Está bem também?
- Não sei
- Ué..
- Pois é...finalmente resolvi que não era junto dele que ficava feliz. Me separei dele
Fiquei em silêncio. O que se diz a alguém que nem devia ter casado com aquele cara e que, ao fim de quase 30 anos, finalmente percebe o que toda a gente sabia? Continuei em silêncio.
- Você não diz nada? Deve estar radiante com a notícia.
- Não estou radiante. Na verdade, não estou nada. Só me pergunto como alguém pode perder 30 anos da sua vida numa ressonância, com o corpo gelado, tendo espasmos a toda a hora, dores nos ombros, sem dizer nada, e depois sai do exame a meio.
- Como é?
Ana Santos, professora, jornalista
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