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2 Contos: “O TARADO DO ÔNIBUS” e “Bolo Lêvedo”

Maria Martins
Maria Martins

Conto “O TARADO DO ÔNIBUS”

Quando alguém olha alguém, cruza-se com alguém na rua ou mesmo quando vai ali no comércio comprar alguma coisa e vê alguém, será que ela pensa: “é gay, é lésbica” - ou apenas passa ou compra ou cumprimenta? Seria defeito dela não perder tempo conjecturando coisas sem utilidade prática nenhuma para aquele momento?

              Estava diante de uma mulher trans sendo assediada sexualmente, dentro do ônibus. Engraçado, que era um homem hétero que estava se roçando nela descaradamente.

              Olhei ao redor e, sentado ao meu lado, estava um rapaz assistindo tudo.

              - Você pode ir ali ajudar a moça?

              - E se ela estiver gostando?

              - E qual mulher você já viu gostando de sarro público na sua vida?

              - Pode ser uma fantasia sexual...

              - Só se for fantasia sexual de homem tarado!

           As vozes começaram a aumentar de volume porque não entrava na minha cabeça que alguém pudesse ver uma mulher em apuros e pensasse uma bobagem daquelas. Seria porque ela era trans? Não. Mil vezes estive presente ao molestamento de  mulheres no ônibus e em bem poucas vi algum homem a defendendo do ataque.

              - ... O senhor pode por favor me ajudar a tirar esse tarado nojento de perto dela?

              Nada. Começou a olhar pela janela pra disfarçar.

              - É incrível como os homens nem percebem seu próprio machismo...

              Levantou e foi lá. Lá com o tarado. Ao invés de prender as mulheres no vagão rosa, deveriam ter um vagão “roxo” para os “descontrolados”. Já tivemos presidente com “aquilo roxo”, deputado com o “saco roxo” e mulheres “roxas de raiva”, diante de tanta grossura...  Mas vamos lá...

              - Querida, sente no meu lugar.

              - Muito obrigada!

              Ela quase saiu correndo e se jogou no espaço vazio. Ia eu voltando pra ficar em pé na redondeza do meu antigo lugar, quando o “tarado” resolveu me interpelar:

              - “Tu é” a favor das bichas por quê?

              - Ahn? Olha, eu creio que não falei com você ainda.

              - Vai ver é sapatão, pra se meter onde não foi chamada...

              - Se você não parar de nos assediar, vou ser obrigada a ligar para a polícia.      

Espantoso. Até aquele momento, ninguém tinha falado nada. De repente, outra mulher falou:

- Essa coisa de homem folgado precisa acabar. Deixe de ser tarado e volte para seu lugar.

Aí veio outra voz e depois outra voz. Todas femininas. Chamaram o motorista e pararam o carro no meio da Av Paralela, em plena Salvador da Bahia.

              - Ônibus não é lugar de tarado!

              - Se saia, seu descompreendido!

              E ele foi retirado.

          É incrível como as pessoas não se veem apenas como passageiras, transeuntes ocasionais, pessoas, e apelam para sarros, relações, ejaculações. Como se fôssemos um buraco onde “se pode jogar” as podridões do dia. Ao invés de  falar, sarrar, molestar e ofender nossos corpos.

              Os homens continuaram olhando para o nada.

              Chegou meu ponto. Desci. Anestesiada pela milésima vez.

Agora me respondam vocês, mas pensem um pouco, troquem de lugar com a gente, pela primeira vez:

              - Por que os homens agem assim?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Bolo Lêvedo”

Não sei se já ouviu falar no Bolo Lêvedo. É uma especialidade da Ilha de São Miguel nos Açores, Portugal. Na época em que vivi na ilha, existiam dois tipos de bolo: um mais pequeno e mais amarelo e outro maior, mais baixo e mais pálido, revestido com uma farinha. Me parecia, no sabor e no aspecto que o melhor era o segundo. Para mim o outro era meio de borracha e esse era um manjar dos Deuses.

Quem nunca provou precisa provar. É uma coisa do outro mundo. Macio e adocicado. Com queijo da Ilha de São Jorge era a minha perdição. Eu tinha de me controlar para não comer um inteiro.

Religiosamente, todos os dias, a meio da manhã e a meio da tarde, uma fatia (1/8 mais ou menos) com queijo no meio, era um momento que mesmo agora, enquanto escrevo, me fazia água na boca e me consolava a alma.

Quando minha mãe me foi visitar também se apaixonou pelo bolo. Como era uma excelente cozinheira e tinha uma curiosidade interminável para aprender coisas novas sobre alimentos e sobre culinária, percebi que queria muito saber como se fazia aquela iguaria. Marina, uma querida, querida amiga, nos informou que os melhores Bolos Lêvedos eram feitos por uma senhora velhinha, numa zona afastada da ilha, chamada de Furnas.

Minha mãe, todos os dias, perguntava quando podíamos lá ir. Não foi fácil conseguir um tempo para o fazer, mas conseguimos. Decidimos ir bem cedo, acho que num domingo, umas 4h da manhã. A viagem foi muito chuvosa, sem movimento de carros, meia taciturna. Passamos por várias montanhas. Foi uma viagem com tempo limitado, com preocupações com o clima e com o fato de estarmos as duas sozinhas nas montanhas, mas nossos corações estavam tremendamente entusiasmados com a ideia de conhecer aquela senhora tão incrível e de saber por ela como se fazia algo que amávamos tanto.

As indicações da casa da senhora nos levaram direitinhas na sua porta. Batemos e ela mesma veio atender. Era bem velhinha com aquelas roupas escuras e tradicionais. Simpática, generosa. Ficamos felizes. Estávamos perto do objetivo final. Aproveitamos para comprar bolos quentinhos, acabados de fazer. Depois apresentei minha mãe e perguntamos se nos podia dizer a receita do bolo lêvedo pois gostaríamos muito de o fazer em casa, quando voltássemos para o continente.

Nessa época não existia internet, nem globalização. Nada. Muito menos desejo de roubar o negócio. Era uma coisa muito pouco conhecida e só existia ali. E no nosso coração existia apenas o desejo de poder comer de novo aquela iguaria, na nossa casa, feita por nós. Não existiam interesses outros para além de poder matar saudades daqueles sabores tão mágicos. E a senhora sabia disso. Explicou tudo direitinho mas na parte final da explicação a gente não conseguiu entender quando era o momento certo de retirar do forno. Ela falava que o momento de retirar o bolo era quando se pressionava com o dedo e acontecia algo. Que nunca conseguimos entender. Perguntamos algumas vezes mas não conseguimos entender. Parecia que passava um carro na hora de ela dizer aquela palavra porque não conseguíamos entender. E tentamos muito.

Na Ilha de São Miguel, nos Açores, existe um sotaque bastante fechado para as vogais o que por vezes torna difícil a compreensão de algumas palavras.

Chegou um momento que paramos de insistir. Poderíamos deixar a senhora magoada e isso era algo que não queríamos que acontecesse, de todo.

Podíamos ter vindo irritadas e tristes, mas viemos sorrindo e rindo, porque atravessamos tantas dificuldades, gastamos tanto tempo, chegamos ao local, de frente para o “objetivo” e, por uma palavra que não entendemos, não conseguimos o que desejávamos.

Na viagem de volta, sorrimos muito. Viemos felizes. Fomos percebendo que a viagem nos deu muitas coisas boas: uma amiga que nos ajudou a encontrar a senhora, um carro emprestado de outra amiga, o nosso entusiasmo em acordar cedo, a viagem cheia de conversa e de paisagens soberbas, conhecer aquela senhora tão incrível, falar com ela, comer o bolo quentinho.

Pela vida fora contamos esta história muitas vezes com um enorme sorriso nos lábios. Recordarei sempre aqueles olhos felizes de minha mãe, falando e rindo da nossa incapacidade de entender a senhora. Que bom que não entendemos aquela palavra, não foi mamá? Encontramos outras alegrias naquela busca.

O mundo mudou rápido e muito em breve começaram a vender bolo lêvedo nos mercados  do continente de Portugal – o mais “plástico”, mas dava para sossegar a saudade.

Penso muitas vezes nesse dia e como uma palavra pode ser tão importante e tão difícil de ouvir, de entender, mas também como isso nos pode ensinar outras coisas.

Ana Santos, professora, jornalista


Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.

 

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