2 Contos: “O PEN DRIVE NEM É MEU!” e “Mais uma aliada, graças às mulheres”
- portalbuglatino
- 19 de jul.
- 5 min de leitura

Conto “O PEN DRIVE NEM É MEU!”
Aplicava golpes nas pessoas desde sempre, nem sabia desde quando – era como se tivesse nascido assim. Ficava doente de propósito, roubava a borracha dos amiguinhos e as vendia para os vizinhos. Assim foi crescendo. Quando a punição passava perto, ele logo se atirava ao chão e se fazia de coitado.
O tempo passou, ele resolveu se endireitar e servir ao seu país – claro – sabendo-se que era histórico para nós, sairmos de um governo pacífico para outro. Terrível acordar cedo, prestar serviço militar, ser de baixa patente, ter que fazer exercício, bater continência, montar guarda - odiava aquilo tudo. Na verdade, achava que amava odiar. Era o seu melhor estado. Odiar e colocar defeito nos outros.
- Sou um cara sincero - e pá – já soltava o primeiro palavrão na lata da pessoa. Tinha uma seleção de palavrões na ponta da língua – para espantar os “os bons de coração” - ele dizia. Se juntou aos crápulas – venceu na vida, mesmo que tivesse sido na base da ameaça. Jogava baixo, e daí? O negócio era se dar bem.
Ninguém ligava muito para o que dizia e ele foi ficando, arrumando um troco aqui outro ali. Afinal, aquilo era a sua natureza. Quando era flagrado, xingava, atacava. Era um cachorro louco. Mas – isso é importante – passava desapercebido, em meio a centenas de pessoas que se coadunavam com seu modo de pensar.
Havia o funcionamento do mundo e havia o funcionamento daquela vila de gente estranha, mas que estava por trás da forma como aquele mundo funcionava, por trás das leis. E ele já não era nem notado. Só quando bradava seus palavrões e ofensas. Nessa hora, era olhado como doido, como “desalojado mental”. E ia ficando.
Fez intrigas, subiu na vida, chegou ao topo do seu mundo. Grande erro. Deveria ter ficado invisivelmente camuflado ali, em meio aos seus semelhantes. Mas não. Resolveu ser o mais visível. O “padre da missa, a cereja do bolo, a chave da porta” – visível demais para ter um lugar para esconder-se e escapar.
Seus pequenos golpes viraram golpes gigantes, mas toscos, sem talento. Reuniu e era seguido por inúmeros inábeis, que lhe assessoravam em seus golpes. Porém, sendo inábeis, prejudicaram pessoas em larga escala - muitos morreram, inclusive, por sua falta de sensibilidade.
Deixou pistas de suas ações por toda parte. Eram como o pão da história de João e Maria. A policia vinha e recolhia fotos, arquivos, pistas, filmes – exatamente como os passarinhos que vinham e comiam as migalhas de pão do Joãozinho.
Um belo dia, pistas e pistas depois, provas e provas depois – toc toc – aquela autoridade que deveria ter-lhe posto de castigo quando era criança e pegava as borrachinhas dos amigos de escola e pelo qual nunca foi castigado, apareceu. E dessa vez, ele foi flagrado. Não com uma borracha, mas com um pen drive.
- Não é meu, não é meu – gritava. Olhava ao redor, procurando ajuda. Quem o salvaria?
Lembrou-se da mãe e as borrachas, nunca devolvidas, vendidas como joias para a vizinhança. Não tinha mais idade para arrependimentos. Procurava apenas um meio de escapar. Se fosse culpando qualquer pessoa – até a mãe, até seu país – ele o faria. Escrúpulo não era com ele.
- O pen drive não é meu! Meu Deus, todos os que me deram limite devem ser punidos! Vamos vender o país! Socorro! Estou sendo massacrado! Amigos! Senhores! Excelências!
Inútil.
Olhava para o tornozelo, olhos baixos, desolado, mas... Levantou a vista, já procurando um jeito de escapar. Alguém lhe devia alguma coisa? Poderia ameaçar, encurralar?
Da nossa natureza, afinal, quem escapa?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Mais uma aliada, graças às mulheres”
- Pois não?
- Gostava de marcar reunião com a diretora, se for possível.
- Ela está disponível agora se quiser falar com ela.
- Agora? Claro...
///
- Professora Ana, entre. É a nossa nova professora de história, certo?
- Sim, sou eu sim.
- A que devo a sua visita?
- Nem sei por onde começar.
- Talvez sendo direta. Não gosto de perder tempo. Diga sem rodeios. O que se passa?
- Bom, senhora diretora, precisamos falar, pensar e agir sobre uma pandemia de meninos e meninas que estão sendo educadas em casa de forma muito equivocada sobre o que é ser patriota.
- É, eu sei. Temos falado bastante sobre isso e andamos em busca de soluções. Mas porque fala disso?
- Porque quando falamos da história do Brasil, por exemplo, eles falam melhor dos E.U.A do que do seu próprio país e dizem que isso é ser patriota. Defendem o que diz Trump e são contra o seu próprio Presidente. Não querem que os ricos paguem impostos, querem que os pobres continuem a pagar impostos, não querem que os pobres tenham regalias. Continuam a considerar Bolsonaro o Presidente mesmo sabendo de tudo o que ele não fez, das 700 mil pessoas que morreram por causa da sua falta de empatia e humanidade. Mesmo sabendo de tudo o que fez de errado e ainda dizem que isso é ser patriota. Agora estão dizendo que quem tem tornozeleira eletrônica é que é patriota. Já estão combinando assaltos e crimes para também terem tornozeleira. Querem anistia para todos os amigos que são ladrões, criminosos, apenas porque gostam deles. Quem não conhecem nem gostam, acham que merecem a pena de morte. Tem mais, mas penso que já é suficiente. Se eu soubesse disto quando estava na faculdade, tinha tirado biologia para me relacionar com a natureza. Os humanos me cansam, me desiludem e mesmo nova estou sem forças para lutar.
- É...não está fácil mesmo. Eu, como deve imaginar, já sei desses horrores há algum tempo. Sigo em frente porque desistir é pior porque tudo vai piorar ainda mais. Por isso, se veio dizer-me que vai desistir, por favor mude de ideia. Não podemos. Temos de enfrentar esta pandemia, passo a passo, devagar, mas firme, senão seremos engolidas por esta gente e quem sabe um destes dias teremos a pena de morte só porque defendemos a inocência de alguém inocente.
- Então permite que eu os corrija? Que eu lhes mostre os comportamentos e ações dos verdadeiros patriotas?
- Sim, foi para isso que a contratei. Eu não posso aceitar que um brasileiro defenda os E.U.A ou outro país, mais do que o Brasil. Que deseje mal ao Brasil. Que ache bem que um país, seja qual for, coloque sanções ao Brasil e ainda fique feliz.
- Fico feliz em ouvir tudo isso. Confesso que estava com medo que a diretora fosse bolsonarista.
- Não tenha porque não sou. Sou boa pessoa. Sou um ser humano. Ainda sei educar as pessoas e ainda sei como deve ser uma pessoa de bem, uma pessoa que respeita e defende o seu país, que respeita os outros até ao limite em que esses países prejudicam o nosso. Ainda sei viver em comunidade, ainda sei ter empatia. Aqui, Professora Ana, ainda se respira um mundo como deve ser. Anime-se. Nós somos resistentes e vamos nos juntar aos resistentes que existem por todos os cantos do Brasil e juntos vamos voltar a ter um país equilibrado e saudável. Olhe, para começar, siga o Bug Latino. São duas mulheres que também lutam por um mundo e um país justos. E quem conhecer que possa juntar-se a nós, me informe. Temos de nos unir.
- Entendi. Que bom. Que alívio.
- Também fiquei aliviada. Agora mãos à obra. Temos muito trabalho pela frente, não é?
- Tem razão. Temos sim. Mais uma vez obrigada.
- Eu que agradeço por ter encontrado mais uma aliada.
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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