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2 Contos: “O NASCIMENTO DOS HEROIS” e “O que se procura? O que se aprende?”


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Conto “O NASCIMENTO DOS HEROIS”

                     Ela via algo de especial nos heróis desde muito pequena. Eles poderiam agir como todos, poderiam se omitir vendo injustiças, poderiam calar. Mas engraçado – não faziam nada disso. Ao contrário, interrompiam as coisas erradas: desde a avozinha que não conseguia atravessar a rua sozinha, até denunciando os maiores bandidos. Cada um tinha a sua fala, era muito massa: “A visão além do alcance, o olho de Tandera”...

                     Eu havia acabado de assistir um programa com Mamadou Ba e engraçado: senti a mesma coisa especial. Seria ele um tipo novo de herói? Num mundo tão cheio de recursos, falar, usar a sua palavra para defender direitos – sem IA, sem animações, sem marketing – só você e seu peito aberto – era muito, era excepcional. E ele defende o fim do racismo para o bem da economia.

                     Defender o antirracismo é como defender o fim da fome e das crueldades do mundo – sabemos que isso não vai acabar sem a modificação dos nossos valores, mas – era engraçado – o reconhecimento de um herói fazia essa sensação "de viver o difícil" parecer emocionante e única. Portanto, uma não possibilidade de errar.

              Porém, na via real, é claro que as pessoas erravam – e muito. Ainda há poucos dias, uma mulher na arquibancada de um estádio em Santa Catarina, criou aquele momento “vergonha alheia” super típico no universo paralelo da xenofobia, chamando alguém de “nordestino”. Ao ser flagrada, logo alegou que estava apenas se “defendendo de ofensas anteriores” – como se ser racista fosse uma forma de resposta passível de ser escolhida...

                     Mamadou Ba tem aquele ar casual dos heróis. Estava passando e falou, leu a notícia e não concordou... Todo mundo faz isso – só que cada um na sua casa. O que o herói faz de diferente é que ele expõe fragilidades, sem pensar especialmente de que aquele ato pode fazer com que se dê mal – o que acontece muitas vezes – ou não. Apenas vê uma coisa errada, levanta e aponta, defende, fala, faz alguma coisa.

                     Todos nós poderíamos ser heróis, mas na verdade, aquelas poucas pessoas que falam são mesmo especiais. Se as chamamos “ativistas” é porque agem, não ficam sentadas, falando para ninguém. Chamam a atenção de alguma forma. Mamadou Ba levanta a voz e defende o antirracismo e sua voz sai do Canadá e chega ao mundo inteiro. Assim, com esse jeito despojado, informal, ele é natural ao admitir que perdeu empregos e endereços, além de ganhar o trabalho extra de desmentir tudo o que já se inventou sobre ele. Isso porque no mundo inteiro, as pessoas se iludem que devem aliar-se ao poder: ricos, dinheiro, política, finanças, ao invés dos que são mais frágeis – como se fosse mais fácil, mais curto o caminho que nos separa do lado poderoso. Mas o verdadeiro herói nos lembra que o nosso lugar de luta nunca chega perto do bolso dos que ganham bilhões – isso é a mentirinha que queremos consumir – mas é a ilusão que nos vendem e que compramos.

                     Os heróis nos lembram de que podemos ser também heroicos no dia a dia e defender um mundo mais justo, onde as pessoas sejam capazes de se cumprimentarem e terem uma calçada para caminhar, numa cidade limpa e segura. Pequenos heroísmos diários que constroem futuros novinhos em folha e que, diante de chuvas ou secas, nos tragam – para todos – algum conforto.

                     Mamadou faz isso: constrói novos contornos antirracistas. Assim, aquela catarinense – a que tomou o flagrante de racismo e que vai responder a um processo criminal porque racismo no Brasil é crime – vai chegar na delegacia morrendo de medo, vai passar vergonha na frente do delegado, da mãe, do pai, do Brasil. Igual ao chanceler alemão que saiu de casa e veio de tão longe pra meramente “pagar mico” no Brasil. Quando estamos nos sentindo juntos, a sensação de “desprezinho coletivo” é essa. Mas quando eles expõem a injustiça do sistema ao berrarem “vá pegar seu carro de boi”, é pela voz de Mamadou que extravasamos essa dor – que no Brasil tem séculos de repetição.  Nego, Paraíba, Nordestino, cabeça chata, pobre, preto, mulher = inferiores. É, reconfortante, ao olharmos para o lado, encontrarmos com a figura de Mamadou, Greta, Marielle e muitos mais, vendo como são muito mais marcantes do que quem perde tempo e energia sendo xenófobo, achando que vai aparecer – e aparecendo – só que na delegacia.

                     Meu coração – como o de todos os que já viram um filme de herói – fica com essa coragem de dar mais um passo, de não pensar nas consequências pessoais e sim no bem comum. E assim, olhando para o que fazem os heróis, quem sabe ser a heroína do meu filme, mostrando que é possível e razoável resolvermos problemas falando, nos comunicando, dialogando. Na nossa “Sala da Justiça”, o Bug Latino, a pergunta que não quer calar: Qual é o seu talento? O que veio fazer nesse mundo, senão contribuir?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “O que se procura? O que se aprende?”

Salvador, 21 de novembro de 2025

Tati,

Procurei uma vida inteira. Procurei muito. Procurei sem nem perceber que estava procurando. Nessa procura, encontrei muito mais do que esperava...

Encontrei uma pessoa que me ensinou a ler e a escrever. Outra que me ensinou a tirar leite das vacas. Outra que me ensinou a guardar moedas, todos os dias, numa caixinha escondida em cima do armário da cozinha. E depois me ensinou que aquelas moedas, juntas, me davam a possibilidade de adquirir coisas que precisava muito. Me ensinou essa espera, essa paciência de deixar as moedas se irem juntando, devagarinho, formando um conjunto, cada vez maior. Ou vários conjuntos para vários objetivos.

Conheci uma pessoa que me ensinou a fazer contas e a saber dar e receber troco ou trocado, quando vendia ou comprava algo. Uma que me ensinou a aquecer uma casa com fogão de lenha e lareira na sala. A ter sopa. A ter pão. A fazer em casa tudo o que eu puder. A dar valor a isso. A guardar laranjas na árvore. A guardar batatas na tarimba. A coser meias, fazer bainhas, pregar um botão, apertar os sapatos. A fazer os deveres ou trabalhos de casa, que eu adorava. Adorava o cheiro da borracha ou safa, o cheiro da sebenta, o cheiro do lápis. Adorava, ter uma página vazia, que enchia com palavras, frases, ideias, respostas, soluções, somas, divisões, multiplicações, subtrações. O prazer de me preparar para fazer uma tarefa e o prazer de terminar uma tarefa, me honra muito ter aprendido e sou muito grata a quem me ensinou porque parecem coisas sem valor, mas têm sido lemes na minha vida.

Mais do que uma me ensinaram o valor de um acordo selado com um aperto de mão ou selado dando a minha palavra de honra. Ou os dois juntos – aperto de mão e dar a palavra. Me ensinaram a cuidar dos livros da escola, porque eles ainda iriam servir a outras pessoas, assim como meus sapatos, calças, camisetas, camisolas, casacos, guarda-chuvas, cachecóis, luvas, chapéus, meias.

Aprendi com várias pessoas que existem horas para dormir, para comer, para estudar, para trabalhar, para descansar, para conviver, para pensar, para recordar, para acreditar. Nem sempre gostei desses horários ou regularidades mas aprendi que me dão consistência e por isso me dão saúde e por isso me dão bem estar e por isso me fazem feliz.

Aprendi a receber visitas em casa mas não gostei. Fiquei sempre com a sensação que tem algo pouco natural. Depois aprendi que pode ser natural ou não dependendo de mim e das pessoas que recebo. Foi bom perceber isso. Comecei a gostar mais.

Aprendi a trocar pneu do carro. Aprendi a verificar o óleo do carro. A verificar o ar dos pneus. A lavar carros. Percebo agora que foram aprendizagens muito raras para uma mulher. Não sei por quê. São necessárias a qualquer pessoa. E tremendamente úteis.

Aprendi que tem coisas que não é bom aprender. Nem experimentar. Nem ter por perto. Podem ser coisas, comportamentos, mas também podem ser pessoas. É bom aprender isso cedo. Eu acho que aprendi tarde. Mas veio a tempo. Vem sempre a tempo.

Aprendi que o mundo não é o que as pessoas dizem que é.

Aprendi que quem eu sou, sou eu que digo, que decido, que determino e essa foi talvez a maior aprendizagem de todas. Aprendi com uma pessoa que durante toda a sua vida, nunca pôde ser quem era, quem queria ser, quem deveria ter sido.

Percebo agora que muitas coisas que me ensinaram, foram como desejos, pedidos, sementes.

Aprendi a tratar as aprendizagens como trato as minhas plantas, minhas mudas, minhas árvores. Regando, tirando folhas secas, podando, aguardando, acompanhando. Sendo. Umas vezes a poda foi mal feita e preciso aguardar que cresça de novo para podar melhor na vez seguinte. Outras vezes não deu para regar mas logo volto a fazê-lo. Faz parte.

Aprender, procurar, sem saber quando será a próxima aprendizagem.

Lembrei que ainda tenho de ir caminhar, depois tomar meu banho, e estudar antes de fazer o jantar.

Querida Tati, hoje é isso que tenho para te dizer da minha vida. O que tens para dizer da tua vida?

Abraço

Ana Santos, professora, jornalista


Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.

 

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Imagem: Andrea del Verrocchio


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