2 Contos: "FEBRÃO" e “Uma Vida para Aprender”
- portalbuglatino
- há 2 dias
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Conto "FEBRÃO"
Havia uns turistas que tinham chegado para conhecer a cidade e não queríamos – de jeito nenhum – deixar de mostrar-lhes o que Salvador tem de mais especial. Se você pensou em Farol, Barra, Pelô, nem passou perto. Saímos em busca das pessoas. Não sei o que os prefeitos veem na cidade, mas a melhor administração do mundo não deveria pensar nem por um minuto em prédios mais altos, invasão do meio ambiente, asfalto, cimento, nenhuma educação com o lixo e muros – já repararam como Salvador tem muros? Eles “nos atacam” na entrada do Dique, na Vasco da Gama, no Rio Vermelho. “Nos atacam” com aqueles cones gigantes que fecham as ruas da Pituba, na falta de educação dos motoristas – generalizada – no lixo na rua, pela rua e na invisibilidade dos garis – os grandes heróis urbanos da cidade.
- Se você pretende fechar a rua com cones, por que abre a rua? Não te parece meio idiota?
Uma pessoa não pensa nisso fora da campanha eleitoral, você pode dizer – mas pensa sim, se estiver com febre. Quando a virose te pega, você percebe qualquer mínima escorregadela administrativa – e Salvador pisa na banana o tempo todo. Seu corpo começa a doer, você quer chegar em casa depressa e na Cidade Baixa, aquela Blitz miserável acaba com a sua resistência. Tudo bem que a PM não espere que eu esteja doente. Mas veja: nem eu esperava ficar com febre e passeando com turistas na Cidade Baixa. Esperava o Bonfim, a Conceição da Praia, o sol gostoso do inverno. Virose? Quem espera virose?
Portanto, quando Jaciara recebeu as pessoas lá no Calabar, com aquele caruru perfeito como sempre, um sorrisão e mostrou a beleza oculta de uma comunidade aqui da cidade, sem prefeito e sem alarde, agradeci demais a Deus porque tudo o que tem de errado aqui não afasta a maravilha que é conviver com as pessoas. Jaci já queria fazer bolinho de estudante, já falou de todos os quitutes da Bahia, já deixou meus amigos com água na boca por gerações futuras, com tantas receitas e quitutes.
Eu sou a primeira a apontar que o audiovisual daqui não pode mais só mostrar os meninos pulando no cais, mas as pessoas... passa as gerações e lá estão elas... tocando seu coração.
O que impede Salvador de facilitar a aproximação de pessoas para pessoas, não sei. Nenhum gasto com cervejaria e muito gasto com convívio social, informação clara sobre a destruição das Bets, ao invés de coloca-las no Estádio de Futebol, a invasão às vidas das crianças feita pela adultização que está ali na internet de casa...
Pra quê tanto muro pra impedir a circulação livre das pessoas? Portugal é tão pequenininho e você tem a impressão de zonas urbanas gigantes, apenas porque nada na rua tem muro e aqui tem muro no Campo Grande, tem muro pra chegar na praia, tem placa de localização faltando porque priorizaram escrever em inglês. Ler, sem febre, “Abaeté Lagoon”, ao invés de ver algum esforço para manter a tradição e a cultura das mulheres do Abaeté, até aumenta a minha febre. Político oferecendo o Abaeté para evangélicos e nós tendo que impedir os piores males, as maiores perdas – coisas simples do tipo “deixem como está”, “facilitem um pouco a nossa vida” não fazem parte. Nunca fazem parte
Piscou os olhos febris na sua cama. Agora, além da febre, o enjoo. Virose é fogo. Mas assim, doente, via as coisas com tanta clareza que desejava a mesma virose para todos os políticos. Falariam menos besteira, seriam bem menos grosseiros, não teriam disposição para mentir. Isso seria uma benção! Não sentirem ânimo para mentir! Não seria perfeito se eles parassem de enganar os pobres coitados que, entre uma oração e outra, creem em tudo o que pastores e padres pregam, sem usar o bom senso? O Trump quer invadir o Brasil é isso bom? Então tem brasileiro torcendo pelo time adversário e tudo bem? Tem gente “entregando” para os americanos a forma como a Câmara joga e tudo bem? Ninguém expulsa quem entrega jogo? Que espécie de jogo esse Eduardo Bolsonaro acha que é pago pra jogar?
Febre.
- A gente pega esse Brasilzão de meu Deus que tá tirando o pé da lama e tenta derrubar, chafurdar, destruir, dar tesoura voadora, acertar na canela... Ai que enjoo desses caras, em Brasília... Asquerosos, preconceituosos, arrotando Deus, Pátria e Família e expondo crianças numa internet sem controle nenhum, cheia de bandidos. Eles são mais bandidos que os bandidos porque são esses caras que mantém a porta aberta... Ai.. minha barriga dá voltas...
Fechou os olhos, botou o termômetro debaixo do braço e com aquela dor no corpo insuportável, se virou na cama tentando dormir. São muitas batalhas para um só povo... Muitas batalhas...
Melhor dormir.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Uma Vida para Aprender”
Dava sempre tudo tão certo. Sempre que acontecia algo, eu sempre encontrava a solução. Sempre que havia necessidade de alguém fazer algo, eu sabia fazer. Nas coisas mais difíceis, onde poucos ou nenhuns conseguiam resolver, eu dava um jeito. Isso foi me dando a noção de que a vida era fácil, pelo menos para mim. A noção de que apesar das dificuldades, apesar dos outros não serem capazes, eu sempre seria capaz de as resolver, de as enfrentar, de as superar.
Papai do Céu deve ter visto isso e deve ter ficado preocupado. Afinal a vida não é assim e quem pensa como eu pensava, um dia vai ter uma surpresa.
Tive. Várias.
Desde menina imagino o Papai do Céu, sentado lá no alto, olhando o mundo, cá em baixo. Imagino ele olhando a gente vivendo e escolhendo quem tem de alertar, quem tem de tirar daquele lugar e levar para outro. Tento imaginar o que ele viu em mim, suas preocupações e como ele sabia exatamente o que era necessário.
Eu fui percebendo que Ele ia colocando na minha vida coisas e problemas que eu não sabia resolver. Mesmo assim, eu continuava tentando resolver, ou tentando achar que se não conseguia resolver, não existia solução – por isso, tinha resolvido.
Quando fiquei doente, achei que era normal - todos ficamos doentes. Nem pensava que tinha ficado doente por deixar de pensar em mim. Nem sabia que “pensar em mim” era uma tarefa da vida que todas as pessoas deveriam ter em conta.
Quando fiquei sem emprego achei que não havia problema porque eu era capaz de encontrar outro qualquer emprego, já que sempre tinha trabalhado no que queria, quando queria, ganhando mais do que esperava.
Quando começou a demorar “encontrar um emprego” e o dinheiro começou a ficar curto, achei que era aprendizagem, e que a família, amigos ou o mundo me ia ajudar a resolver a situação. Aguardei achando que estava a fazer o certo.
Quando me separei achei que o problema estava na pessoa que me traiu. Fiquei lamentando minha infelicidade.
Quando fiquei sozinha, achei que eram os outros que me abandonaram. Andava vitoriosa pela vida por ser a pessoa certa que ninguém via, ninguém queria, porque não via a maravilha que eu era.
- É Papai do Céu...o Senhor, sentadinho lá no alto, enviou tantas mensagens e eu não vi nenhuma.
- Normal. Estou acostumado.
- Agora que o conheço, que comecei a entender as suas mensagens queria lhe perguntar como faço para que meu filho possa me ouvir ou ouvir o Senhor.
- Eu já estou tentando faz tempo. Como deve imaginar, sendo seu filho, talvez demore como demorou com você. Vamos ter calma e esperança.
- Mas eu queria tanto ajudar, eu queria tanto evitar que ele sofresse o que eu sofri.
- Isso você não pode impedir. Nem você nem eu. Ele vai ouvir quando for capaz.
- Como posso ajudar?
- Deixando seu filho me ouvir, deixando o nosso “canal de comunicação” sem interferências.
- Como eu faço isso?
- Cuide de si que já vai ser um enorme passo, para você e para ele. E quando ele tentar fugir das coisas dando justificações, culpando o exterior e os outros, fique em silêncio.
- E se ele insistir em ouvir a minha opinião?
- Diga que não sabe. Que gostava de saber mas que não sabe.
- Não sei se consigo.
- Pois, eu sei. Mas tem de conseguir. Por você e por ele. Tudo o que precisamos resolver não está nos outros.
- Pensava que já tinha aprendido tudo...
- Pensava que aqui era como na escola? Que terminava de grau e depois se quisesse continuava ou parava? Não é assim não. Tem sempre muito para aprender, cada vez mais – não é cada vez menos. Você aprende para entender o próximo nível e conseguir ultrapassar o próximo nível. E assim por diante.
- Nunca tinha pensado nisso. Como ainda estou longe...
- Mas vai lá chegar. Pronto, agora vá. A vida me chama.
- Vou. A minha vida também. Obrigada.
- Não tem nada que agradecer. Você veio aqui para fazer coisas que TEM de fazer. Não esqueça disso. Fui...
Ana Santos, professora, jornalista
Imagem: Isabel Lhano
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