2 Contos: “EU E ULYSSES GUIMARÃES NA MANIFESTAÇÃO” e “É a tua vida”
- portalbuglatino
- 20 de set.
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Conto “EU E ULYSSES GUIMARÃES NA MANIFESTAÇÃO”
Nossa... Fazia tempo que os brasileiros não se encontravam em manifestação! Os antidemocracia tinham feito um serviço sujo muito bem feito ao plantarem na sociedade ideias malucas como “o Brasil vai virar Cuba ou Venezuela” ou que a Terra estava fora do eixo por causa dos comunistas... Ehehehe. Eu ouvi uma dessas! Aliás, andando para a manifestação ainda lembrei que estava caminhando com meu primo francês “emprestado” na Ondina, quando uma vizinha, ao saber que ele morava em Paris, falou que a França tinha sido “invadida pelos muçulmanos” e que eles tinham um “ranço no sangue”. Que o passavam pra população porque tinham muitos “muçulmaninhos”... Ficamos todos perplexos ouvindo tantos desatinos continuados.
Mas mesmo com tanta gente envenenada e emprenhada pelos ouvidos, continuamos brasileiros. E - por Deus – cansamos desses deputados federais. Cansamos ao ponto de perder a preguiça de protestar nas ruas do Brasil – e olha que o Brasil é grandinho...
Coloquei, portanto, os pés na rua logo cedo, pensando em encontrar amigos e vizinhos não contaminados pelo verme da ditadura.
- Bom dia, como vai?
- E aí? Vai pro Cristo, em Ondina?
Dizer bom dia a todos nos aproxima de um Brasil onde volta a haver cordialidade e preocupação com o bem estar de vizinhos e pessoas com as quais cruzamos todos os dias. Pelo menos com esses que vemos precisa haver um mínimo de consideração. No ponto de ônibus. Nas calçadas. Ali na barraquinha de salgados, bem na entrada do Calabar. Há um momento onde as vidas se cruzam e ali também poderiam se cruzar sorrisos e gentilezas. É um privilégio e eu vivo isso. Um tesouro social da Bahia. Bom dia e gentileza, sorrisos cordiais. Isso aparta – ou como se diz na Bahia – desaparta preconceitos, religião. Ao nos aproximarmos, as torpezas políticas que já praticaram contra nós ficam mais leves de carregar porque voltamos a ser o que somos - brasileiros.
- Você viu que o Lula não caiu na do Trump? Ta pensando que brasileiro é besta, “home”?
A cada bom dia um comentário que vai lá na nossa história e nos recostura um pouquinho. Lembrei da morte de Ulysses, de Tancredo, de Teotônio Vilella, de Ayrton Senna. Traumas. Lembrei de Collor de Melo, tiranossauro Temer – com aqueles micro bracinhos nervosos, gesticulando e nos empurrando tantas retiradas de direitos trabalhistas... Traumas. Lembrei das mentiras de Sergio Moro – um juiz, juiz – como eles nos enganaram... Lembrei da batida da Policia Federal na Faria Lima, em São Paulo e das “galinhas desesperadas na Câmara”, no pós batida policial na Faria Lima... será que uma coisa não tinha algo a ver com a outra(?)... pelo menos, tantos anos de convívio com a safadeza tinham nos deixado a todos “ligados... desconfiados”... com um olho no padre e outro na missa.
Andei aquele pedaço da Av. Centenário, rumo à praia.
Dia de luz, festa de sol. Ainda bem que Caetano e Anitta nos chamaram. Tudo bem: ainda não vi nenhum dos fieis aos ETs a caminho da manifestação, mas nós – os brasileiros – os democratas – os que romperam com a parte podre da Câmara Federal - estavam por ali.
- Saia de cena, Temer. É uma indignidade fazer essa cara de digno numa hora dessas. Fora da minha casa, Nikolas e o resto de seu bando, gangue ou lá que nome tenha. Vá e leve sua peruca ridícula, sua malícia, seus parentes e amigos suspeitos. Saia seu deputado polícia. Fora seu deputado pastor. Fora castas. Cansei de vocês. Fora deputados vendidos. “Traidores da democracia são traidores da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Somos brasileiros verdadeiros. Mestiços e benditos, indo para a manifestação contra esses deputados que deveriam ser fulminados pela verdadeira brasilidade – a nossa – a do povo.
“Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”. – Ah Ulysses, se você conhecesse o rescaldo que vive na Câmara agora... “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”.
- Não ousem envenenar o que foi escrito com paixão pelo Congresso Nacional.
“Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil”. – E assim, chegou ao Cristo.
- Bom dia, como vai?
Chegou o dia do povo na rua. Com Ulysses, tenho certeza...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “É a tua vida”
Os outros podem dizer muita coisa de nós, mas nós não dizemos. Somos. Vamos sendo. Vamos experimentando. Vamos caminhando em busca do sol, do barulho da água, do cheiro de flores, de pessoas boas, de comida que nos faz bem e que adoramos o sabor. Podem dizer de nós que decidimos bem ou mal. Nós, vamos seguindo o aroma da verdade, da vontade, da esperança, em busca do nosso bem estar em cada instante.
Os outros têm tantas palavras e tantas certezas para a nossa vida, enquanto nós mergulhamos nos instantes, apenas em busca de viver plenamente.
Apesar das pessoas perceberem que eu era uma menina muito masculina, que só gostava de brincadeiras dos rapazes, que tinha voz grave, que vestia roupa de menino, eu apenas percebia que era feliz utilizando roupas que me deixavam livre para subir em árvores, para me atirar ao chão no futebol, para andar de bicicleta. As brincadeiras de menina eram muito chatas, olhar para uma boneca parada, colocar e tirar roupinhas. Eu queria suar, saltar, rebolar, mergulhar, viver, viver o ar, o calor, a chuva, a terra, a lama, a grama, os animais, os insetos, o luar, o mundo.
Existia uma sensação espantosa que persigo até hoje, a de me sujar limpando a casa, a terra, o carro, o que for, e depois me limpar. Existe neste ciclo algo que me faz feliz. As bonecas nunca me deram isso, nem estar sentada num sofá conversando com amigas sobre os namorados. Isso significava que eu era lésbica? Talvez para as pessoas, mas para mim era apenas a procura de viver o mundo corporalmente, do meu jeito.
Aos 18 anos ainda não tinha namorado e todos à minha volta comentavam. Eu vivia aliviada, imagina ter de “carregar” uma pessoa que não entendia a minha liberdade... Nem pensar! Ninguém era capaz de me acompanhar, me entender, ver o mundo que eu via. Procuravam nomes para me dar, procuravam me definir, procuravam me encaixar em alguma categoria. Eu me perguntava e me pergunto até hoje para quê ter de ter um nome? Para me colocarem numa gaveta quando morrer? Eu vou virar cinza, não precisam disso. Foi tanta chatice de todos terem namorado e namorada que um dia, quando um dos caras que me chateava para namorar comigo insistiu, eu aceitei. Eu gostava dele, a gente entendia-se bem. Talvez namorar não fosse tão chato assim com uma pessoa como ele. Mais ou menos, foi mais ou menos porque a ideia de namorar de cada um era muito diferente. Aos poucos, aos trancos e barrancos, fomos acertando e eu fui gostando de me ver ali. Tinha a minha liberdade intacta, quando estávamos juntos éramos muito felizes. Via-me num futuro com ele e mais uns 4 ou 5 filhos. Minhas roupas de menino continuavam, minha voz grave igualmente, meu jeito de subir em árvores virou habilidade no esporte. Ambos tínhamos amor pelo esporte e ambos estávamos seguindo caminhos muito interessantes. Ia dar certo. Um dia, ele se cansou. Do nada. Queria casar e eu estava no segundo ano da faculdade. Já tinha encontrado uma mulher que casaria de imediato. E casou. Penso que hoje em dia teríamos nossos 5 filhos. Um deles ou todos seriam atletas, bons atletas, disso não tenho qualquer dúvida. Acredito que seríamos felizes. Acredito que viveríamos juntos para sempre. Por mim era isso que ia acontecer. Algo natural. Não foi. Ninguém deu nomes nesta hora.
Não sei o que as pessoas viram, provavelmente muita coisa que imaginaram. Mas como disse, ver é diferente de existir. Depois de mais uns quantos namorados com a mesma tipologia – insistem muito até conseguirem começar a namorar, depois começam a viver a parte de estarem com a gente e ao mesmo tempo terem interesse noutras mulheres – pensei que era melhor voltar à minha vida de liberdade, sem ter de dar satisfações pela roupa de menino, pela voz grave, pelo meu jeito selvagem.
Quando aquela mulher me deu um beijo na boca de surpresa não imaginava que ela estava me abrindo um mundo novo, um mundo interior, sensações e emoções novas. Ouvir as pessoas falarem sobre esses assuntos que não sabem, não vivem, não entendem, me deixa com pena. Delas. Essa mulher abriu um mundo novo de emoções, mas também me mostrou que também as mulheres não se bastam com um ou uma parceira. Essa mulher, a que veio depois, e depois e depois. Até tu apareceres. Como eu. Tu igual a mim. Tu de roupa de menino e eu de roupa de menino. Tu de voz grave e eu de voz grave. Tu já não subindo às árvores. Eu ainda subindo às árvores. Tu me defendendo, quando ainda mal me conhecias. Tu vendo o mundo que eu via. Tu vendo as jogadas, as injustiças, a única ficando do meu lado. Eu te bastando. Do meu lado, segurando a barra, barrando o vento, as chuvas, as tempestades. Eu, do meu jeito, continuando a subir em árvores, andando de bicicleta. Me sujando para limpar o mundo, para depois me limpar e sentir que a vida vale a pena.
As pessoas continuam a falar da minha vida. Elas continuam a tentar definir o que faço, a tentar dar nomes a uma vida que não tem nem quer nomes. Continuam sem entender que não são as roupas de menino, nem a voz grave, o problema. Que não é preciso dar nomes ao que não se sabe, não se entende, não se imagina. Não se dá nomes ao que alguém constrói, ao que surge novo, ao que é pessoal.
A terra continua a ter o mesmo cheiro, o vento continua a afagar meus cabelos, a chuva continua a lavar tudo por onde passa. Nenhum deles tenta imaginar o que sou nem o que faço. Nem tenta dar nomes. Eu aprendi a olhá-los, a apreciá-los, a vivê-los, sem nomes, sem categorias. E damo-nos bem, desde que nos conhecemos. E penso que será sempre assim. O sol aquecendo, a chuva molhando, a terra acolhendo, o vento ventando. Não fico olhando nem tentando dar nomes quando aparecem diferentes, pois serão sempre eles, apesar de diferentes. A chuva vem fraca um dia e forte no outro. Mas é chuva. E o que me interessa é quem são eles, quem eu sou. Sem nomes de roupa de menino ou de voz grave. Sem pressa de casar, sem pressa de te magoar. Apenas a vida, apenas eu. E agora, vejam só, apenas a vida, apenas eu, apenas você.
Ana Santos, professora, jornalista
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