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2 Contos: “@DIFERENÇAS” e “Em direção ao amanhã”

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 28 de jun.
  • 6 min de leitura
Felícia Leirner
Felícia Leirner

Conto “@DIFERENÇAS”

              - Que mundo é esse, perguntou-se espantada.

              Tinha 65 anos. Era uma das profissionais mais especializadas do País, quando o assunto era comunicação humana. Mas nem isso a tinha preparado para o que via acontecer e era aceito socialmente como “normal” - uma geração entediada com a falta de atividade ao redor da sua vida, sem responsabilidades ou mesmo obrigações. Não aproveitava nada, não vivia nada - nem o bom, nem o mau - numa roda de perda de tempo enorme.

              Preparava profissionais para falarem melhor, exporem melhor seus pensamentos, sentimentos e emoções. Mas conhecia a doença da comunicação profundamente, primeiro estudando lesões cerebrais e depois penetrando na escuridão desse tédio que economiza cada vez mais palavras, convivências, acordos, fidelidades. É como se tivesse nascido uma geração fadada a não querer nada, não gostar de nada e a achar que o dinheiro é como cascalho – tem sempre em abundância no bolso das pessoas.

              Tinha uma mensagem de sua ex-paciente falando do sobrinho que depois do segundo grau não quis estudar mais e vivia preso no quarto, sem perspectiva, deprimido. Não soube responder quando perguntei qual era o talento dele.

              - Ele não nasceu deprimido! Do que gostava? De animais, de jardinagem, de pintar? – ela não sabia.

              - Sou a tia, apenas – respondeu.

              Todos sabiam que criança ela era. Tinha talento para escrever e perseguiu a escrita, assim como a palavra falada. Perseguiu a musicalidade da leitura, num movimento continuado até hoje. E era aquela criança “inesquecível” que nunca parava quieta. Vivia de castigo, sentada na poltrona da sala. E por isso, sabia muito bem o que era não e sim. Mas, ao olhar para essa geração, se perguntava sempre se eles tinham tido essa explicação e sofrido as consequências por não a quererem ouvir.

              Sabia ir ao banco e resolver problemas, da mesma forma que sabia andar de bicicleta – as crianças tinham o que fazer. E faziam.

              O menino atual sente fome e nem se  levanta para procurar o que comer; não sabe fazer nada porque não precisa. “Chama” a comida pelo celular, apenas. Com tantos “foods”, olha fotografias online de comidas, faz um pix e reclama porque o motoboy demorou ou não subiu ou não entrou no condomínio, ou não lhe lambeu os pés, nem percebendo que há um movimento social gigantesco para apartar quem compra, de quem vende. Pobres e ricos precisam habitar esferas, universos, planetas diferentes.

              - Que vida esses meninos terão quando a nossa geração – a de “recém” idosos - acabar? Perceberão que há uma vida além do próprio quarto?

A vizinha tocou a campainha. Queria lhe falar do filho, quando ele passou, as olhou, passou de novo. E mais uma vez.  Lhe deu boa tarde, mas ele não respondeu. Nem levantou os olhos, na verdade. A vizinha lhe segredou que não se falavam mais, sem a ajuda do WhatsApp.

Ficou incrédula:

              - Toda a comunicação, a maior parte da comunicação nasce do WhatsApp? - Como colocar em palavras a complexidade da vida, pelo WhatsApp? Com um emoji?

              - A velha geração precisa ser acionada pela nova! Não existe mundo online, é mentira! É apenas uma forma de ganhar tempo, uma metáfora da vida real, não perceberam ainda?

              Não. A maior das pessoas apenas não era mais capaz de perceber fatos óbvios. Estava incapacitada. Brainrot – cérebro apodrecido, viciado, incapacitado.

              Entreabriu a boca, perplexa.

              - Brainrot – o novo normal – e suspirou.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Em direção ao amanhã”

Sempre que andava num daqueles barcos lembrava da mãe. Barcos pequenos, estreitos, baixos, bastava colocar a mão de fora do barco para tocar a água. Era mais água do que terra. Tudo diferente. Não tinha uma costa para onde ir, mas sim uma imensa água com ilhas pequenas de vez em quando. Umas desabitadas, outras habitadas por iguanas.

- Sabe? Esta ilha é onde se fazem a maior parte das produções de shampoo, sabonete, etc. Quando assistir na TV publicidades com areias brancas, modelos maravilhosos e um mar azul ou verde, corais, saberá que é aqui.

Que mundo tão diferente do lugar onde vive com sua mãe. Um bairro de Salvador apinhado de casas, ladeiras íngremes. Sempre que chove, sua casa fica alagada e ela tem dificuldade em sair e subir aquela ladeira que vira uma cachoeira. Cachoeira de água de esgoto, lixo, terra. Nada parecido.

Seu pai cada vez com menos trabalho agora que está mais velho. Fazer trabalho de pedreiro com 75 anos, problema de ancas, um joelho que não dobra, sem poder carregar pesos, não é mais rentável. A mãe faz roupa, faz comida, o que for preciso. Mas depois do AVC que teve no início do ano, demora mais a terminar as tarefas e foi perdendo clientes atrás de clientes. Mesmo assim está feliz porque a mãe não ficou com sequelas. Ela tem segurado a barra com seu trabalho, pago as contas, cuidado dos dois.

Essa água, essa areia, o barco em que viajam para as competições, os hotéis onde ficam, tudo parece sonho, mas ela não quer pensar dessa forma. Sabe bem como tudo é tão diferente, quer aproveitar, quer merecer e quer aprender a manter-se nessa vida.

A vida de surfista parece fácil, mas não é. Mas para ela a vida de surfista é muito mais fácil do que a que tinha e a que a esperava. Sabe o valor que esta oportunidade tem. Não a quer desperdiçar.

Saboreia em cada olhar aquela areia sem cascas de comida, sem lixo, sem cheiros desagradáveis. Quando observa os tubarões, as raias, os barracudas, as moreias, parece vê-los sorrindo, cheirosos, limpinhos. Os caranguejos transparentes e branquinhos que caminham em direção aos buracos da areia parecem estar vestidos em homenagem a oxalá em dia de sexta-feira como acontece na sua Bahia. Parece sonho. A vida afinal também pode ser um sonho, não é só problemas.

É no meio desse paraíso que precisa tomar uma decisão importante. Seu treinador, empresário e seu namorado, tem cuidado das suas finanças, negócios, patrocinadores, mas ela não quer isso mais. Quer ter o controle do seu dinheiro e das duas decisões. O seu esforço tem de ser valorizado e quer ter o máximo de cuidado nas suas escolhas, nos seus passos. Não quer se arrepender de nada, não quer desperdiçar nada, não quer perder as oportunidades. E aos poucos foi percebendo que perdeu oportunidades de negócio, perdeu dinheiro, perdeu competições, perdeu convites para ir a entrevistas em canais de televisão. Algumas decisões, gostava que tivessem sido diferentes, mas ele nem lhe perguntava. Perdeu demais. Não pode. Sabe que isso vai ter de ser feito com muito cuidado, que vai perder treinador, empresário, companheiro e ficar só, mas sabe também que é o que tem de ser. Já aprendeu como se faz e vai fazer. Quem sabe a mãe lhe dá uma ajuda, quem sabe o pai também. Ficar assim não dá mais e afinal, talvez ele não goste assim tanto dela. Se gostasse cuidava melhor do seu patrimônio e permitia que ela escolhesse. Afinal tudo vem do seu esforço.

Percebeu que é importante manter seus pés no chão, manter-se trabalhadora, agradecida, mas principalmente, precisa ser ela a “dona do seu destino”, ser ela a dar entrevistas, ser ela a falar e acertar os patrocínios, as viagens, os custos.

Nada é pior do que subir aquela ladeira em dias de temporal. Nada é pior do que não saber se tem dinheiro para comer. Nada é pior do que perceber que seu namorado está apenas com você pelas condições que você lhe proporciona. Nada é melhor do que enfrentar a verdade e decidir na direção que mantêm as coisas boas e que depende do seu esforço e trabalho. E aquele paraíso tem lugar para ela, aquele paraíso passará a ser algo normal na sua vida e ela passará a ser alguém que soma ao paraíso. Talvez um dia possa melhorar a ladeira loucamente íngreme onde vive com seus pais, talvez possam sair dali para um lugar mais seguro. Talvez. Mas de certeza que será ela a dizer, a escolher, a decidir.

Ana Santos, professora, jornalista


Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.


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