
Conto “DIFERENTES”
As pessoas normalmente tentavam parecer com o lugar profissional que ocupavam. Mas havia diferentes. Pessoas que, apesar daquela tal formação, eram tão inquietas que faziam outras coisas. Inesperadas. Coisas.
Ela mesma, se autodenominava uma “mestra de obras” urbana. Toda a sua casa havia sido montada com coisas que achara por aí, nas ruas, no meio de utensílios abandonados. Janelas viravam bancadas de banheiros, paredes viravam bancadas de cozinha, saboneteira como porta talheres ou mesmo uma porta de box antiga como bancada da cozinha. Meio ambiente protegido com tudo o que ela “salvara”. E tudo com bom gosto. Quanto mais olhava, mais sentia alegria por aquilo tudo.
Passou o gosto de produzir pequenas soluções e vitórias de construção para a outra Ana, que já era mestra em poda de jardins. Passaram a ter essas duas coisas em comum – e só pra início de conversa. Mas, ainda assim, de vez em quando olhavam ao redor e uma pessoa – diferente – lhes chamava a atenção. Um doutorando em ecologia que respirava moda. Ecologia e moda – dá match!
Técnica olímpica, entrevistadora, editora, jornalista, produtora, exercendo todas as profissões e se complementando, ao complementar o mundo – tantas vezes tão tacanho em produzir especialistas em micro ações que pouco contribuem. Suas mãos teciam fios de criatividade – match!
E o que dizer de uma fonoaudióloga que, através de comunicação profissional conheceu todo o universo por onde ela – a comunicação profissional – poderia passar? Direção, roteiro, apresentação, narração, dublagem, discurso – se a coisa comunica, logo atrai o seu olhar.
Diferentes como uma cientista que inventou um chip que a gente compra, encaixa no sutiã e ele mapeia o tecido mamário. Diferente como ser administrador e trabalhar com moda. Diferente como ser pintor e remodelar uma casa inteira, do chão ao teto.
- Como aproveitar inteiramente o mundo sem nós? - Pensava ela, com os pés em cima da mesa e o teclado do computador no colo, enquanto escrevia um conto para sua plataforma de comunicação. Como aceitar que tenham “brotado do chão” tantas pessoas que renovam seus votos de negação da evolução das mentes, no mundo? Como incutir a aceitação de todos, para todos?
Viu mais uma casa de candomblé invadida. Mais um gay exposto à alguma forma de dor. O Brasil disputando o Oscar por um filme que falou da ditadura, mas não quis perder o amor.
Diferentes.
Chutar, dar tiro e porrada era uma coisa tão cansada que ela nem sabia mais como as nomear para convencer da falta de motivo existencial que tinham. Cuspir, invejar, provocar eram iniciativas ótimas para os pobres de espírito. Só.
- E esses “iguais” vão continuar a tirar a foto com os braços cruzados, cara de macho alfa e trilha “avenger”, vendendo um lucro que nasce “milagrosamente de aprender técnicas de venda especiais” – ou coisa pior.
- Desculpe, mas prefiro os diferentes. Eles sonham.
E adorou conhecer todos aqueles novos “semelhantes” – todos diferentes.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Gota e Poeira”
Ana teve dois filhos: Gota e Poeira. Gota amava cantar e não adiantava a mãe o castigar, lhe dar imensos sermões sobre como se deve viver a vida, de como cantar não é forma de enfrentar a vida, de lhe perguntar como ele iria sobreviver na vida quando ela morresse, que não lhe ia deixar nenhuma herança para ele passar a vida sem fazer nada pelos outros, e muitos mais avisos, ameaças e discursos duros – apenas cantar. Gota não ligava nenhuma ao que a mãe dizia. Fugia da escola ou ficava na escola sem dar atenção nenhuma às matérias. Sempre que alguém tivesse um violão, ou uma flauta, ou uma harmônica, uma conga, qualquer instrumento musical, ali estava Gota, curtindo, convivendo, dando seu show. Era bom, fazia com facilidade amigos. Mesmo em casa, enfiava-se no quarto cantando e tocando, compondo e sonhando.
Ana vivia amargurada. Não entendia como aquele menino tinha ficado assim tão irresponsável. Praticamente todos os seus primos, vizinhos, amigos estavam estudando medicina, engenharia, direito, economia, computação, aeronáutica, engenharia espacial, enfim, todas as matérias que eram mais faladas como as que deviam estudar. Porque razão Gota, seu filho mais velho, tinha de ter virado aquele menino sem eira nem beira? Ela sempre tentou ser boa e justa para as pessoas, sempre tentou ser honesta e responsável, como ia lidar com a vergonha de deixar na Terra um ser humano que não se esforçava para ajudar ninguém, nem se especializava em nada que pudesse ser útil ao planeta?
Depositou muito do seu esforço em Poeira, seu segundo filho. Se Gota ia envergonhá-la, pelo menos Poeira ia ser o seu orgulho. Poeira, desde cedo, demonstrou uma paixão por casas, construções. Ana vivia babando de alegria. Imagina só, um engenheiro, ou arquiteto, ou empresário, ou um dono de uma rede de hotéis ou resorts – isso estava certo e adequado ao ego daquela mãe inquieta. Acontece que Poeira amava casas e construções, mas a parte mais física como o serviço de pedreiro, canalizador, eletricista, pintor, carpinteiro. E era o que fazia nos tempos livres sem a mãe sequer imaginar. Estudava na faculdade de engenharia, tentando aprender tudo o que era possível para melhorar as construções. Fez graduação, mestrado, doutorado. Via a mãe feliz e sabia que quando lhe dissesse que estava estudando isso tudo para ajudar nas construções dos que não tinham dinheiro, ela não ia gostar muito. Mas iria ter de aceitar. Seria uma questão de tempo – pensava Poeira – porque o que queria era ter conhecimento e mãos para poder dar e proporcionar bem estar nos outros. Sonhava em fazer casas para os sem abrigo todos do mundo, casas que se construíam num minuto, fáceis de arrumar e de transportar. Sonhava em fazer casas fáceis para resistirem ao calor, outras para resistirem ao frio, outras para resistirem a inundações, outras para resistirem a incêndios, outras para resistirem a explosões.
No dia que Poeira falou sobre suas reais intenções, Ana nem queria acreditar. Também ele ia deixa-la num lugar menor em relação aos vizinhos, familiares e amigos, que mostravam e bajulavam seus filhos e filhas, mostrando por todos os lados das redes sociais e reuniões sociais seu orgulho com os lugares onde os seus filhos tinham chegado e para onde iam. Tudo era prêmios, cargos, salários elevados, riqueza, reconhecimento, ego e vaidade. E ela dilacerada. Deixou de sair, de conviver. Deprimiu e cada vez era mais difícil tirá-la de casa.
Um dia, incêndios terríveis e monstruosos destruíram toda a cidade onde vivia. Ana morreu dentro de casa, sozinha. Os filhos já viviam cada um na sua casa e ela tinha o hábito de lhes mentir, para não os preocupar. Por isso, Gota e Poeira, junto com vizinhos, familiares e amigos acreditaram que ela estava passando férias em Portugal com umas amigas. Tudo mentira e tudo deu errado. Ana foi encontrada no meio das cinzas. Um horror, uma tristeza. Gota e Poeira ficaram destroçados pela perda da mãe e pela destruição da cidade, sua mãe e sua terra amadas.
Decidiram tudo fazer pela reconstrução daquele lugar tão lindo e tão amado no mundo. Gota participou em todos os shows que se realizaram para arrecadar dinheiro e Poeira liderou os que iniciaram a reconstrução da cidade – desde as cinzas até ficar tudo como antes. Bem, não exatamente como antes porque ele iria colocar mudanças estruturais para que nunca mais ninguém morresse ou tivesse sua casa destruída, por causa do clima.
Sabemos que passado 10 anos, o Presidente concedeu aos dois irmãos a mais alta condecoração civil dos Estados Unidos – foram agraciados com a 'Medalha Presidencial da Liberdade'. Ficaram famosos, admirados e amados para sempre. Penso que mãe ia gostar de saber. Se calhar, lá no lugar onde está, até sabe...
Ana Santos, professora, jornalista
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