2 Contos: “DESPEDIDAS” e “Maldita Mega Sena”
- portalbuglatino
- 9 de ago.
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Conto “DESPEDIDAS”
Nunca se pensa o suficiente sobre elas. São tristes. Nos deixam diante de nossos próprios vazios, próprios silêncios. Quando você sabe que não haverá até logo, que estará frente a frente com o adeus, que só poderá – e deverá – alimentar-se das suas recordações de momentos, risadas – alegrias... Ou não. Quando o que lhe resta é ver como a atitude corajosa a ensinou a deparar-se com as despedidas que vieram depois, tentando manter-se um pouco mais corajosa porque afinal a herança que todos esperam é que o inesperado “exemplo - funcione”.
Com as malas na mão, na hora do adeus, é bom reconhecer que o caminho afinal foi leve e que todos riram muito mais do que se criticaram. Na hora de dizer adeus, tanta coisa importante passa a ter a devida “nenhuma importância”: os orgulhos, críticas, implicâncias, egoísmos perdem para questões cruciais como: vocês traíram a confiança um do outro? Se mentiram? A velha questão dos exemplos, sempre se aproxima muito mais do que fará falta.
O homem mais rico do mundo pode ter que “comprar” pessoas para o “aeroporto”; o homem mais pobre pode perceber-se milionário de amigos – tudo incompreensivelmente justo e simples.
Havia um enorme silêncio, no aeroporto. Parecia vazio – mas não - estava cheio de saudades. Quantas decisões difíceis tiveram que tomar e sustentar? Bloqueios de força? Ali vendo-o andar em direção ao portão de embarque, mala pequena na mão – não há muitos espaços vazios na bagagem, acreditem – vi que ele arrastava enorme quantidades de passarinhos e animais silvestres, que cantavam sem parar. Estava meio fraca – talvez poque lhe fosse mais fácil simplesmente ter uma febre que a anestesiasse – mas atenta aos mínimos movimentos.
Na sua casa – tropical e sempre tão cheia de som de pássaros – se ouvia o estranho silêncio daquela despedida.
- Ah, sim... Quis então levar os pássaros... sorriu por dentro.
Ainda não havia sido chamado o voo, mas ela intuía que não demoraria muito. Estranhou que lhe deixavam embarcar com pássaros cantando para todos os lados, que ninguém parecia se importar com seus voos rasantes. Estranhou a enorme jandaia berrando em seu ombro, a sabiá cantando com toda força e os bem-te-vis batiam nos miquinhos que pulavam por sobre malas e balcões de embarque. Estava lá, perto do portão, sabia que não poderia embarcar, mas seu coração insistia em tornar o momento feliz, cheio de exemplos, risadas, discussões acaloradas.
- Evoluir, é o que fazemos... e vendo-o por ali, distraído pelos passarinhos lembrou de uma música antiga de Al Jarreau, chamada “Morning” https://www.youtube.com/watch?v=kzXNdLVZs3k&list=RDkzXNdLVZs3k&start_radio=1 Sorriu, ficou mais leve e começou a fazer o caminho de volta à casa. Ele estava muito bem acompanhado, afinal...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Maldita Mega Sena”
Sempre teve medos. Medos das coisas e situações que via os adultos com medo. Absorvia tudo. Tudo. Se um adulto tinha medo do escuro, ela também tinha. Se um adulto ficava desconfortável e medroso num lugar com barulho, ela também. Se os adultos começassem a ficar inquietos e em pânico com violência, igual ficava.
Pense em todos os medos que existem. Pensou? Ela tinha. Todos.
Ao crescer foi percebendo que aprendia isso com os adultos pensando que essa aprendizagem era boa. Que estava a fazer bem, que estava a aprender a ser adulta. E quanto mais e mais cedo aprendesse, melhor.
Foi quando a vida começou a acontecer a sério que percebeu que aprendera tudo errado, achando que estava a ser rápida e precoce. Todos os medos que aprendeu erradamente, achando que estava “bombando”, teve de os desaprender, um por um, a duras penas.
Tirar sangue era um tormento até ao momento em que percebeu que era uma coisa boa saber como estava por dentro – ela que gostava tanto de saber o que se passava por dentro dela mesma.
Aprender solfejo era um suplício até ter um colega de escola com menos 30 anos, lhe explicando e lhe mostrando que aquilo era divertido.
Medo do escuro até aprender que o escuro era relaxante, era calmante, era bom.
Medo das pessoas até perceber que as pessoas era um espelho para si. Era através delas que sabia de si. Quando percebeu o quanto era bom não mais as largou. Pessoas, pessoas e pessoas. Amava elas.
Viajar, medo de ir para longe, de ficar em lugares onde não conhecia ninguém, que o avião caísse, o carro batesse, algo avariasse. Até descobrir que viajar era um negócio, negócio esse vendido nas televisões, agências de viagens, redes sociais, como algo maravilhoso, com apoio para resolver qualquer problema. Aí a coisa mudou de figura. Aproveitava todas as promoções, todas. Foi a todos os cantos do mundo onde a viagem era barata, onde era moda. Que medo o quê, ela ficava era orgulhosa de si. Chegava de uma viagem e já começava a pesquisar a próxima.
Encurtando a história, resolveu todos os seus medos, Todos. Menos um. O medo de morrer.
Foi a uma cartomante para tentar saber como seria a sua morte. Para tentar se preparar. Que erro colossal. A cartomante lhe contou que quando ela ganhasse a mega sena, esse seria o momento em que partiria desta vida. Meu pai do céu. Pense numa pessoa que sai de um lugar parecendo que tomou uma caixa de cerveja. Perdida, desiquilibrada, trôpega, desatenta, caminhou em curvas até ao carro. Ligou o carro, seguiu até casa, ouvindo buzinas por todo o lado, de todos os carros que passaram por ela e tiveram de travar, se desviar, fazer milagres, para evitar um acidente. Chegou em casa e, sendo sexta-feira, dia da família jogar a mega sena, fingiu uma dor de cabeça e disse que nesse dia não jogava. A filha mais velha disse que jogaria por ela. Ela pediu que não, que por favor não jogasse. A filha disse que não o faria – mas sem a mãe saber, jogou por ela.
Nesse dia, magia aconteceu. Pelo menos para a sua família. Nesse dia, uma desgraça aconteceu. Pelo menos para ela. Os números que a filha mais velha colocou por ela, deram a mega sena mais milionária de sempre.
Dizem que a família ficou louca, feliz, cheia de planos. Dizem que ela, fez clandestinamente as malas para fugir da morte. Ao fugir de casa de carro, tentando fugir de ganhar a mega sena, de ficar com esse dinheiro, eu sei lá, quando todos estavam dormindo, sofreu um acidente e morreu ao embater contra um carro com um grupo de amigos que vinham de uma festa, todos completamente bêbados. Vixe.
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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