2 Contos: “DEPOIS, O PROBLEMA É DE QUEM JULGA” e “Perder para ganhar”
- portalbuglatino
- 2 de ago.
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Conto “DEPOIS, O PROBLEMA É DE QUEM JULGA”
Estava saindo de casa - exatamente abrindo o portão. Minha vizinha – uma senhora, como eu – passou na calçada ao mesmo tempo. Eu a cumprimentei, mas ela nem ouviu. Logo se virou e falou:
- Meu Deus, ele vai ser julgado...
- Quem?
- O ex-presidente, coitado...
- Coitado? Mas coitado por que?
- Não me diz que você também está contra ele?
- Não é uma questão de estar contra. Mas acontece que ele cometeu uma fila de crimes e vai ser julgado por causa disso. Esse julgamento aí vai ser o primeiro de muitos.
- Vai dizer que você é contra o filho refugiado dele?
- O filho dele nunca foi refugiado, de onde tirou isso? Ele está escondido em outro País cometendo um crime atrás do outro, minha senhora!
- Meu Deus, não me diga que é comunista...
- Se eu sou ou não comunista, uma coisa não tem nada a ver com a outra. A senhora está misturando assuntos...
- Já vi tudo... agora só falta confessar que apoia o tal ministro do Supremo...
- O Xandão? Totalmente... Pois se ele está enfrentando todo tipo de chantagem...
- Vai perder tudo! Vai pro Inferno!
- Oh, minha senhora, Inferno não é lugar não... é energia... e o Ministro Xandão só atrai energia positiva pela coragem, firmeza...
- Sangue de Jesus...
- Amém..., Mas entenda: quem comete crimes, sendo rico ou pobre, precisa ser julgado. Se for condenado, vai pra cadeia e pronto.
- Mas no caso do Presidente é diferente...
- Ex!
- Ahn?
- Ex-presidente! Agora ele é apenas réu.
E a coisa foi indo e indo, até que eu resolvi subir a rua. Ainda ouvi ela dizer alguma coisa como “o zap dos terraplanistas”, “do plano para que a Terra mudasse de eixo junto com a geopolítica mundial” e que a lei acabaria por “perdoar todos os milhares de envolvidos no ‘passeio’ de 8 de janeiro”.
- A senhora disse passeio? A senhora está misturando o ataque a justiça brasileira, com golpe de estado? A senhora ainda não percebeu que o Brasil está se defendendo de golpes sucessivos?
Nada, nada...
- ... E agora essa ousadia de enfrentar os Estados Unidos... O tal presidente atual xingou o pessoal de Israel, imagine... Eu que não vou acreditar nessa coisa de que tem criança morrendo porque Israel é o povo escolhido...
- Essa Israel nem passa perto de ser a da Bíblia, minha querida... e a senhora quer que o “Amarelão” venha mandar aqui na nossa terra? Quer voltar a se escravizar?Pois vá se escravizar sozinha... Ta descompreendida?
Num dado momento começou a chover forte. Desisti de andar. Com o perdão do trocadilho “cheguei quase a amarelar”. Mas antes lhe disse:
- Depois, ainda tem gente que coloca a culpa no Xandão... Benza a Deus, viu?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Perder para ganhar”
Ela sonhava com o príncipe encantado. Aprendeu nos livros, nos filmes, nas conversas com as amigas. Perguntava-se onde andava o seu. Será que estava bem do seu lado? Ou estaria do outro lado do mundo? Será que ela seria capaz de o encontrar, de o descobrir no meio de um mundo tão gigante, com tanta gente? Suas amigas já tinham namorados e pareciam felizes. Ela não tinha, nem tinha muita vontade. Gostava muito de viver no seu tempo, com suas tarefas e ocupações, divertindo-se com a vida e com o que tinha vontade. Estar parada, de mão dada, olhando o mundo, não era muito o seu estilo. Seus dias eram ativos, correndo para algum lugar, andando para outro, carregando algo, limpando ou construindo o que fosse necessário. Não tinha mãos para estarem paradas, agarradas a outras mãos, para ficarem quietas. Se isso era namorar, encontrar seu príncipe, não queria encontrá-lo tão cedo.
Vários amigos se insinuaram, mas ela fazia-se de desentendida. Eles cansavam e partiam para outras meninas, outras hipóteses. Ela ficava aliviada.
Um ex-colega de escola começou a aparecer pelo rio, pela praia, nos encontros esportivos noturnos da aldeia. Engraçado porque sempre o achou bonito e interessante mas ele não convivia muito e também faltava bastante. Parecia não ter muito interesse na escola, nem nela. E alguém que não tem interesse pela escola, aprendeu que não seria grande pessoa. Lembra de ele um dia estar na escola e ouvir ele explicar a uma colega que ia deixar de estudar. Tinha o futebol e ia começar a trabalhar. Trabalho de dia, futebol de noite e aos finais de semana. Tudo parecia para ela bem distante da sua vida. Quem deixa a escola para trabalhar? Nem imaginava que ele tinha o Pai no hospital, que precisava ajudar financeiramente em casa, que não tinha a liberdade dela.
De repente, ele estar sempre onde ela estava, nas suas férias, era estranho. Estava começando a incomodá-la. Parecia interesse, mas também sentia asfixia, percebia que ele desejava mais do que apenas presença, apenas amizade. Estranhou, afinal na escola quase nem a cumprimentava e agora dizia umas coisas totalmente opostas – que sempre gostou muito dela, que não se aproximava porque ela era fechada, era de uma família de casta diferente da dele. Tudo coisas incompreensíveis para ela, uma menina simples e pobre de uma aldeia.
No meio das férias, numa festa, ele bebeu mais do que a conta e perguntou-lhe se queria namorar. Quis dizer que não porque não queria ficar presa a ninguém, com as mãos presas, travada com compromissos insuportáveis de namoradinhos. Mas não conseguiu recusar. Gostava dele, achava-o lindo, sentia que tinham muitas coisas em comum e eram os dois apaixonados por esporte e praia. Ia tentar, pela primeira vez, dividir seu mundo com outra pessoa. Não foi fácil. Ele vinha com todos os clichês, ela vinha refilona, crítica, disruptiva. A coisa não fluía, socialmente falando, mas no resto entendiam-se bem. Aos poucos ela foi se habituando, aceitando, gostando da vida a dois. Aos poucos ele foi ficando cansado de discussões, da sua independência, da sua autonomia. Ele queria casar rápido, ter filhos rápido. Ela queria estudar lentamente e sempre, queria casar mas mais tarde, ter filhos, muitos, mas depois. Silenciosamente essas diferenças começaram a afastá-los. Ou a afastá-lo porque ele achou que ela não queria casar – nunca lhe perguntou. Ele achou que estava apostando no lugar errado, mesmo gostando dela. Ele via que ela estava construindo um caminho, uma vida. Ficava feliz mas também com medo de não existir mais espaço para ele. Os medos corroem, os medos criam muros, silenciam mais ainda as conversas. Ela com finais de semana de estudo em casa, ele com finais de semana de futebol e folia depois. Ela aceitando com alegria uma vida com ele, com tudo o que eram juntos, com tudo o que poderiam fazer no futuro, não estranhava quando ele não podia aparecer. Até que ele começou a chegar diferente, até diferente ao abraçar, ao beijar, no olhar. Tinha começado a envolver-se com outra mulher, que também trabalhava e que se divertia nos finais de semana vendo jogos de futebol, em busca de um marido por entre os jogadores. Encontrou um que estava obcecado por casar. Tão obcecado e apressado por casar que nem interessava com quem. Bastava que fosse uma mulher que lhe desse filhos e estava tudo bem. Até perceber que aquela mulher não gostava de quase nada que ele gostava. Mas já era tarde. Tinha filhos, um casamento e ela ficou destroçada. Destroçada por que nunca quis namorar e ele insistiu, nunca quis dividir a vida com ninguém e ele insistiu. Ela foi aprendendo a amá-lo, a aceitar essa vida diferente. Já imaginava um casamento interessante, diferente, afinal a sua relação era diferente e agradável. Elogiada por todos.
Mas ele queria e depois já não queria. Ele passado uns anos, queria de novo. Depois de casar e de ter filhos, queria de novo. Hoje, se ela dissesse que sim, ele iria querer de novo.
E ela agradece ele ter ido embora. Doeu muito, mas teria sido insuportável ser enganada, casada, com filhos, com toda a gente sabendo menos ela.
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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Infelizmente boa parte da população brasileira acredita em mentiras e não busca informação. Segue o que os outros falam. Uma mentira contada várias vezes acaba virando verdade para eles. Eu já não entro em conversa com essas pessoas. Não perco o meu tempo!