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2 Contos de Viagem de Trabalho


Conto “A ESTRANHA RUA DO HOSPÍCIO”

Universidade! Há algo muito especial em fazer parte do processo de evolução que a universidade causa na gente. Eu amava estudar ali! Muitos alunos em sala, curso presencial, professores cheios de títulos e exigências. A turma se organizou com um “conselho de CDFs” que sabiam muito das matérias que dividiam uns com os outros e repassavam em forma de aula – ou de cola – para os que nada sabiam.

Correu a notícia de um Congresso no nordeste do Brasil - precisamente em Recife, Pernambuco. Num primeiro momento, nem pensei em ir porque não tinha dinheiro, mas de alguma forma meus estágios começaram a aparecer como meio de remuneração e eu olhei de frente a ideia de ir para Pernambuco.

Hummm, hotel próximo mais barato... – bem baratinho(!) – Rua do Hospício. Meio estranho, mas o entusiasmo venceria tudo. Lá embarcamos, ônibus fretado, a enorme turma quase inteira dentro dele, lanches, pão de forma, pouco dinheiro pra usar a lanchonete das rodoviárias. Mas animação todos tínhamos de sobra!

Já dormindo na BR, senti que estávamos parados. Chegamos tão rápido? Não demorariam dias? É. O ônibus quebrou mesmo. Muito atraso, mais atraso ainda, os lanches iam acabar, meu Deus! Veio o ônibus reserva. Chegamos.

Hotel meio peladinho, mesa com toalhas de plástico, box que era melhor encarar de chinelo, mas nada disso tinha importância nenhuma. Fomos correndo para a abertura do Congresso, dei umas cabeçadas que acho que ninguém viu, comemos no hotel, na volta, banho, cama e pronto.

No folheto do balcão do hotel, estava lá, muito bem escrito: café da manhã com frutas diversas. Fui dormir imaginando mesas enormes cheias de melancias cortadas como se fossem enormes dentaduras, uvas, laranjas, mamão com aveia – e eu nem sou assim tão amante de frutas...

Amanhece o dia e lá estou eu animada com as frutas diversas. Garrafa térmica cheia de café, outra garrafa com leite quente, pão, manteiga e – bananas - um cacho em cada mesa.

Comi o máximo que pude, já colocando manteiga nuns pães que ia levar para o Congresso, mas não resisti à pergunta:

- Não eram frutas diversas? Onde elas estavam? Nem mesa com fruta tinha...

- Oxente, menina! Tem diversas bananas em cima da mesa ou não tem?

- Ah... Diversas era isso... Rua do Hospício, pode crer! E saí correndo pra não me atrasar. A benção de ter 18 anos é maravilhosa mesmo.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Embate”

Por mais anos que passem, esse momento nunca conseguirá esquecer. Tinha 33 anos, uma vida construída no trabalho, na honestidade, na justiça. Era competente e respeitada profissionalmente. Formava pessoas que iriam formar outras pessoas. Sabia da responsabilidade e assumia-a. Talvez por isso o convite. Pelo menos foi o que lhe disseram e ela ficou feliz e sentiu que era um trabalho, apesar de difícil, recompensador. O trabalho era para ser realizado no seu país e também pelos quatro cantos do mundo, durante alguns anos. Ficou feliz mas também assustada. Precisava estar bem, precisava continuar a mostrar competência e desta vez estaria num lugar de muita visibilidade, de muita exigência internacional. Sabia que seria capaz mas sabia que teria de se adaptar a outra vida. Estava habituada a liderar abertamente, a educar publicamente, a decidir a vida de outros jovens e adultos mas este trabalho iria obrigá-la a gerir sua liderança de outra forma porque passaria a empregada, não seria mais a chefe e as responsabilidades seriam muito maiores. Mas estava tudo bem, ela amava fazer esse trabalho e poder fazê-lo a um nível mundial era muito atraente. Desde o dia que teve a proposta de trabalho até entrar no avião para a primeira fase, numa viagem que incluía Japão e China, sua vida deu umas aceleradas. De cada vez que olhava um documento , ele estava caducado – bilhete de identidade, passaporte. Que loucura... Foi com o pai resolver tudo isso à cidade onde estudou em jovem, pedindo tudo com urgência. Tinha 5 trabalhos e teve de abandonar 3 porque seria impossível lidar com tudo. Num dos trabalhos, em que sabia que teria muitas oportunidades de progredir, levou o primeiro embate. A chefe desse trabalho olhou para ela e disse:

- Sabe que está a fechar uma porta não sabe?

- Não sabia...

- Mas fica a saber que está...

- Lamento muito! Julguei que seria para si uma honra saber da minha evolução e julguei que meu lugar estaria me aguardando depois deste convite irrecusável para qualquer ser humano que se preze na minha área profissional. Penso que após estes anos estarei ainda melhor e serei ainda melhor profissional para esta casa.

- Não, não se pode ter tudo. Ao aceitar esse trabalho, ainda que temporário, esta porta se fechará para sempre.

- Tudo bem! Lamento, como lhe disse, mas a minha decisão está tomada.

Passado uns dias veio o segundo embate. Estava finalizando um estudo acadêmico e foi avisar o responsável que precisaria parar uns anos mas que a razão era sensacional. Afinal, os atrasos eram constantes, ele nunca estava disponível para o trabalho dela, portanto uns anos de paragem até podiam ajudar. Além disso, o que ia fazer poderia valorizar o trabalho acadêmico em muito, depois. Mas as palavras que ouviu não foram muito agradáveis:

- Não se pode ter tudo!

- Sim eu sei, mas também não estava a ter nada, por isso, esse nada, esse caminho sempre atrasado, pode esperar.

- Não pense que estarei à sua espera aqui. Acho que não deve aceitar esse trabalho.

- Está a aconselhar-me a recusar um trabalho de sonho, de realização profissional de topo? Nem acredito no que estou a ouvir.

- Acho sim que deve recusar. Você não vai conseguir nada e ainda por cima está a estragar o pouco que tem!

- Lamento muito ouvir essas palavras e lamento muito saber o que vou perder, mas vou aceitar o trabalho e isto vai aguardar ou então vai parar para sempre e eu depois faço outro. Não tem qualquer problema!

Duas pessoas que sabiam do valor do trabalho que ela ia fazer e que, em vez de a incentivarem e ficarem felizes, fizeram o oposto, a chocou profundamente. Tudo isso lhe ficou na cabeça nos preparativos da primeira viagem. Tratou de tudo, os pais deram ajudas incríveis na resolução de todas as burocracias e logística. Ela precisou reorganizar os 2 trabalhos que manteve. Não existiam pagamentos online, bancos online, ela alugava um apartamento e tinha de colocar o cheque mensal na caixa do correio da casa da dona – teve de pagar antecipado sempre que sabia que estaria em viagem no prazo de pagamento. Depois de cada viagem, tinha de trabalhar o dobro em horas nos trabalhos que restaram. Depois de vários ajustes, de avisos, de afinação no planeamento/planejamento dos trabalhos e da sua vida pessoal, estava preparada para os novos desafios.

Primeira viagem, Japão. Uma viagem para uma cidade do centro da Europa, 12 horas de viagem de avião dessa cidade até uma cidade no Japão. Chegaram de manhã cedo, mas a cabeça estava doída com a diferença horária de 8 horas. Ainda não estava habituada a essas situações. Foram de Metrô para o Hotel, para depois iniciarem de imediato o trabalho. Um calor brutal, com uma humidade/umidade ainda mais brutal, ambiente comum naquela cidade, naquela época do ano. A parte final do caminho até ao Hotel foi feita a pé, saindo da estação de Metrô. Estava ansiosa por chegar ao Hotel, tomar um banho, mudar de roupa e fazer de conta que dormiu, que descansou e começar o dia e tudo o que tinha de fazer.

Terceiro embate. O ambiente na viagem foi sempre muito afável, muito respeitador, da parte dos diretores. Quase a chegar ao Hotel o diretor adjunto aproxima-se dela e falando baixinho diz-lhe:

- Vou lhe pedir que não entre no Hotel ao mesmo tempo que os diretores. Aguarde 5 minutos e quando entrar, sente-se no sofá que tem do lado do elevador. Faça de conta que não nos conhece e quando nós, os diretores, entrarmos no elevador, entre nele também.

- Não estou a entender...

- Olhe, agora não tenho tempo para lhe explicar porque estamos a chegar, mas o Hotel está cheio e não existem mais Hotéis perto para a colocar num quarto.

- Tivemos uma viagem de mais de 12horas e só agora me dizem isso? Porque não mo disseram antes e eu optava por nem vir nesta viagem?

- Agora não dá para falar mais nada. Faça o que lhe digo. Já estamos a chegar. Vai ter de se afastar de nós para não dar a entender que nos conhece.

- Mas continuo a não entender...

- Você vai dormir no nosso quarto.

- Ok, não tem problema nenhum!

- Você não está a entender...você terá de entrar no Hotel clandestinamente, ficará a dormir no chão do nosso quarto.

- Não, não, deve haver uma confusão qualquer.

- Olhe, não podemos falar mais. Até já...

5 minutos perto do Hotel, sozinha. 5 minutos em que sua reputação, sua responsabilidade, sua honestidade, competência, levaram um pontapé na bunda. Não tinha cartão de crédito, não tinha dinheiro para ir para um Hotel. Não tinha como voltar para casa. Não tinha como cortar o caminho que de repente se fez na sua vida. Não sabia onde estava, mas sabia que estava exausta e sem saída para aquela situação. Como foi possível? Como foram capazes?

A vida não foi mais a mesma. Ela não foi mais a mesma. Mas muitos mais embates a aguardavam enquanto muitas pessoas morriam de inveja do lugar que ela tinha alcançado...

Ana Santos, professora, jornalista

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