Conto “ALL YOU NEED IS LOVE”
Em que dia estávamos? O certo era que ainda não havia vacina para todos e o medo habitava um pouco a treva de cada coração humano por problemas para os quais ninguém pensava antes. Variante Delta, Alfa, Cataratas do Iguaçu sem água, índios brasileiros levanto jato de spray de pimenta da polícia. Polícia... nossa... a polícia é outra treva, ela pensava.
Passou a mão pelo queixo. Havia pelos, ali. Pouco afetuosos, como o resto. Olhando ao redor, teve o impacto de sua cedência. Quando nada é suficiente, tudo se iguala a nada porque não importa o que se faça – isso vai desaparecer, se a obediência não for cega.
Recorre às suas plantas, sempre amigas. Seus problemas parecem ser semelhantes. Afinal os abacateiros precisavam de espaço. Também. Um pouco mais de amor ao tomateiro e ao manjericão, um olhar crítico para as roseiras que estavam gestando novas flores. Ali, olhando ao redor, percebeu sua consciência mais profunda.
Tudo o que se faz e tudo o que optou por fazer, o fez porque todos precisam de amor – uma frase muito simples, mas que precisa voltar a fazer sentido pra quem sente. Você ama e o amor lhe dá um lastro de cedência – aquela. E tudo se faz de bom grado, boa medida, mas há – ou deveria haver – ou não havia? – um acordo tácito ali, onde a planta não pode secar. Ela tinha falado isso mil vezes, um milhão de vezes – fique se amar. A única semente que interessa é o amor.
Ali, com regador na mão, ela pensava que sempre evitou reclamar das inclemências da vida para agora ser culpabilizada por todas as inclemências da vida de outrem. Outrem – aquele que não é você; que, ao contrário de você, repete padrões que são vistos apenas quando são utilizados pelos outros contra ela mesma. Ou seja, são apenas visíveis em uma direção. “Na mão”. E você estava sempre na “contramão”. Afinal, há que se ser desobediente e questionar “a mão”. E ali, no que se chama “mão”, você não precisa saber de tudo. Se omitem detalhes. Se sussurram comentários ferinos. A sua culpa pela ação dos outros – esta, sempre. De outrem. Infalível. Mas não de tudo porque certas coisas pertencem não a quem ama, não para serem divididas, mas a quem está na “mão” certa.
Vida Covid. Os olhos estão vendo a luz. O mundo continua morrendo, a Terra derretendo, as famílias acabando. E outras, se acabando entre si.
Vida Covid. O sentido, se houvesse um, é que todos precisamos de amor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto do “Congo”
Ana estava feliz nesse dia. Mais um sábado. Cheirava a caril na cozinha. Um prato que a mãe aprendeu a fazer há muitos anos, em África, e que é único. Único no sabor, na textura e porque trazia muita conversa e recordações. Mais um dia daqueles que tinha esperança de ouvir histórias no final do almoço.
Seu pai chegava sempre mais tarde, aos sábados, mas vinha mais relaxado porque o trabalho já tinha terminado. O almoço era mais longo, sem pressas, nem horários rígidos para cumprir. Sua mãe conseguia ficar sentada mais do que 5 minutos à mesa. Uma benção. Quando o almoço terminava e seu pai e sua mãe permaneciam sentados mais um pouco, no meio de uma vida cheia de tarefas, Ana sabia que podia acontecer de novo. “Por favor, por favor, universo, dá uma ajuda. Mais uma história por favor.“ – murmurava ela. Seus irmãos começavam a perguntar coisas de África, seu pai e sua mãe começavam a sorrir, olhavam um para o outro e lá vinha mais uma, duas, mil histórias da vida no Congo Belga, dos anos 60. Do calor, da humidade, das portas e janelas abertas, das chuvas tropicais, dos barcos estreitos e baixos utilizados para atravessar um rio monstruoso. Dos costumes diferentes, das pessoas surpreendentes. Mundos que pareciam inventados de tão incríveis e sensacionais.
A saliva na boca aumentava sempre que a mãe falava na abundância de bananas e amendoins, alimentos muito raros e caros onde vivia. Sua mãe sempre falava que amava papaia. Outro alimento que ela não conhecia. 4 alimentos, Ana conhece desse mundo longínquo: Côco, Manga, Abacate e Mandioca. Nunca vinham ao mesmo tempo e eram tão raros que viravam acontecimentos. O ritual mágico de ver o pai a descascar a manga, a distribuição pelos 7, o direito a chupar o caroço reservado ao chefe da família. O abacate batido na “mixer”/”varinha” com um pouco de açúcar e uma gota de Vinho do Porto. Papinha dos deuses dividida irmamente. Uma raiz de mandioca colocada no forno de lenha por horas e horas. Colocada na travessa, seu pai e sua mãe abriam a raiz a meio com um corte fundo e serviam-se com uma colher. Engraçado isso. Depois passavam manteiga por cima daquela coisa branca quente e comiam. Parecia gostoso pelas suas caras e olhares. Mas para ela era uma coisa estranha apenas e ela não sabia ainda que coisas estranhas podem ser maravilhosas quando deixam de ser estranhas. Contavam que em África, a raiz era colocada nas brasas da fogueira, esquecida por horas.
Outro acontecimento raro e mágico era quando chegava um Côco. O momento de serrar a casca, de retirar a carne da casca, eram sensacionais. O sabor era delicioso, mas Ana amava todo o processo, mais até do que o sabor. Porque a família estava junta, se revezando nas tarefas de cortar a casca ou outra coisa qualquer, rindo, ouvindo histórias incríveis e em paz. Não existiam problemas, dificuldades, quando África entrava em casa. E Ana aprendeu que África era cheiro de coisas novas e deliciosas, mundos imaginários e reais, pessoas que faziam coisas corajosas, sabores diferentes, bananas e amendoins, bananas e amendoins, bananas e amendoins.
Quando será que a mãe vai fazer caril de novo?
Ana Santos, professora, jornalista
Comments