2 Contos: “CONTRA OS COMUNISTAS” e “A Flotilha da Vida”
- portalbuglatino
- 4 de out.
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Conto “CONTRA OS COMUNISTAS”
A mulher na sala de espera dava um “piti” daqueles e os olhos das pessoas não conseguiam mais fingir que não ouviam seus gritos. Ao contrário: cada vez mais as pessoas viravam as cabeças para olharem bem a fundo aquela argumentação estranha e autoritária:
- Escute! Eu não me trato com comunistas!
- Mas quem lhe disse que a Dra é comunista? Ninguém aqui jamais lhe perguntou nada acerca de política ou ideologia, minha senhora! E de mais a mais, o juramento de Hipócrates é relacionado a uma forma mais filosófica de dedicação aos doentes.
- Eu vi nos olhos dela! Vamos virar Cuba, Venezuela e eu não vou admitir nada assim!
- O doutorado dela foi na Suíça...
- Disfarce!
- Quem fica 5 anos se matando de estudar num doutorado só pra fingir que não é de Cuba, minha senhora...
Mas nada a convencia.
- O problema é que só temos ela como especialista em problemas de fígado, hoje. A senhora vai ter que ir procurar outro serviço.
A feição da mulher estava mais amarela do que bílis. Mas ela não estava convencida.
- Me solte que eu quero ir embora!
- Ninguém a está segurando, minha senhora. Deve ser o seu mal estar que não a deixa se levantar...
- Não me segure, menina...
Nesse momento, a médica abriu a porta do consultório para que o paciente atendido saísse e viu aquilo tudo. Um furdunço. A mulher logo se atirou, porta adentro, com a atendente atrás:
- Mas a senhora não ia embora e agora toma a frente de todos?
- Você também deve ser comunista!
Na sala de espera, os pacientes reagiam de diferentes formas:
- Essa mulher está tomando a minha vez?
E o burburinho corria solto. Ela entrou, se jogou na cadeira do doente e logo esticou o braço para tirar a pressão. Se sentia mal. Muito mal.
- Não queria ser tratada por você, mas estou terrivelmente enjoada.
- Avalie não pegar tanta linha do mundo... – a médica falava e a examinava cuidadosamente. ”Estar assim com tantas emoções não digeridas vai acabar com o seu fígado, sabe? A senhora bebe? Não seria melhor dar um tempo?
Lhe deu uma injeção, pediu exames, prescreveu remédios novos. A atenção, o carinho, foram acalmando a paciente lentamente.
- É verdade que estudou na Suíça? Que chique... Suíça é chique...
- É frio. Prefiro a Bahia.
- E Cuba? E Fidel?
- Fidel Castro? Mas esse já morreu há tantos anos...
- Não me diga...
- Quem está lá, me parece que é o Miguel Díaz-Canel
- Então Cuba agora... Ai... que com uma notícia assim, até me sinto melhor...
- Tanto sofrimento à toa...
Riram.
Saiu de lá boazinha.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “A Flotilha da Vida”
As pessoas competem. Com suas vidas. Em vez de se unirem. Parecem considerar que a vida é uma competição que termina só quando elas obtêm sucesso. Não param enquanto não conseguem o seu sucesso. O seu sucesso. E relaxam quando o têm. Esquecem que a vida não terminou, esquecem que a competição não termina quando temos sucesso, esquecem que a vida não é uma competição, esquecem que o que importa é o que fazemos, o que deixamos nos corações dos outros, o que deixamos para o mundo e vida dos quem chegam depois e depois e depois, exista vínculo ou não entre nós.
Dizem que Maria era uma menina de sucesso. Bem comportada, estudiosa – tanto que “podia passar o Papa, que ela não parava de estudar”. Depois uma profissional muito competente. Pais felizes, uma menina que virou mulher adulta, responsável, bonita, sociável. A sensação de trabalho feito, a sensação de que estava resolvido o “assunto”. E o “assunto”, mal tinha começado. Maria sabia que tinha tudo o que todos desejam, mas percebia que aquilo não a satisfazia completamente. Se encantava muito facilmente por homens bonitos, charmosos, doces. Até teve um filho de um deles, mas rapidamente precisou se afastar porque esse cara maravilhoso vinha com um bônus muito estranho – era violento, perigoso e circulava no mundo obscuro da vida. Já anteriormente tinha tido uma filha de outro, também charmoso e com família rica. Mas afinal a família já não tinha nenhum dinheiro e ele, vivendo num país que apoiava muito pessoas em situação de dificuldade econômica, aproveitou e conseguiu ludibriar o governo desse país, vivendo com dois subsídios ilegalmente. Claro que um dia o governo descobriu e ele teve de fugir. Maria esconde essa história da filha e dos pais mas ela teve de o ajudar a fugir para a filha não ter um pai preso. Talvez deu umas enroladas com um cara das milícias, com um cara do Hamas, um cara do PCC. Olhem a lista é grande de busca de emoção e de sentimentos reais, da menina Maria certinha. Não parava de estudar se o Papa passasse na porta mas parou a vida enfiando seu coração em tudo o que parecia “sucesso” e afinal era obscuro. E aqueles pais, passaram de passear orgulhosos e até arrogantes mostrando seu sucesso conseguido na “construção” da sua filha perfeita, para humilhação e vergonha.
A competição não termina quando obtemos sucesso. A competição não tem fim, não tem limite. E é assim, porque não é uma competição, como diz a história.
Maria ia caminhando na vida e ia se afundando cada vez mais. Ela e os dois filhos que tinha de cuidar. Mais os olhares dos pais, agora pesados e sem brilho, bem longe daqueles olhos vivos e acompanhados de sorrisos cheios de dentes e sons alegres. Maria sentia que ia em direção a um abismo. Se perguntava se isso era vida, se isso é que era a vida? Não podia ser. Ela não queria viver com aquele peso. Mas como tirar essa dor dos seus pais? Como tratar os filhos sem pensar na forma como surgiram, no pai que cada um tinha? Não era nada disso que tinha intenção de fazer. Como algo que lhe parecia excelente virava uma coisa terrível? Para ela e para todos?
Naquele dia, ia vendo as notícias na TV e nas Redes, ficando cada vez mais incomodada. Com a sua vida tão cheia de retalhos nem tinha dado conta do que sucedia nas guerras que iam aumentando de dia para dia. Mas especialmente Gaza. Seu jeito impulsivo lhe disse de imediato que se não estivesse naquela confusão de vida, ia naquela Flotilha. Mas os pais sempre mal humorados ajudando a levar e a trazer os filhos da escola, dos esportes, da música. Aturava os temperamentos dos dois ex-maridos, ligando a toda a hora, ameaçando, enviando fotos, áudios, acusações. Os filhos com imensos problemas de sociabilidade, de saúde, de rendimento e comportamento na escola. Ela já menos saudável, menos jovem, menos tolerante, menos competente, menos tudo. Como nesse caos sua mente e seu coração ainda a empurravam para outro caos? Por que será que foi empurrada para isso? Sim, a injustiça era tremenda, mas ela nem conseguia equilibrar sua vida, como seria capaz de ajudar outros?
O sentimento ia evoluindo, aumentando, ia tomando sua mente, seus dias. E se tornou insuportável ao ponto de decidir ir. Sim, ia na Flotilha, ia defender quem não estava conseguindo se defender, ia nem que viesse o Papa para lhe dizer que não devia ir. Novamente sentia ser o certo. Tantas outras vezes achou que era o certo e talvez não tenha sido para os pais, os ex, os filhos, o chefe, as amigas, não parecia. Mas de quem era a vida dela, senão dela?
Explicou aos filhos o que ia fazer, explicou como isso era importante para ela, para eles, mas principalmente como era importante não ficar sem fazer nada quando as pessoas estão sendo dizimadas, massacradas, seus lares destruídos, sua paz desfeita. Os pais sabiam que não adiantava não concordarem. Sabiam bem que quando ela queria algo, ela ia em busca. Nada disseram e aceitaram “segurar a barra”. Nem falou nada aos ex e até pensou como seria um tempo de alívio sem ter de os aturar. No trabalho foi fácil. Pediu licença sem muita explicação. Tinha esse direito e estava tudo certo.
Foi na Flotilha, se sentiu fazendo o certo, se sentiu realizada e feliz.
Mesmo nas ameaças, mesmo quando foi presa, mesmo percebendo que estava em perigo de vida, mesmo sabendo que ali era tudo tão tremendamente injusto e que podiam lhe fazer coisas horríveis e matar e fazer desaparecer seu corpo. Estava num lugar onde a maldade liderava e sabia como sua vida estava por um fio. Mas tinha esperança que os filhos, seus pais, seus ex, seu chefe, suas amigas, e todas as pessoas que não conseguiram ir, que não sabem o que fazer para ajudar as pessoas em Gaza, percebessem com a Flotilha que fazer algo é preciso, nem que não se saiba bem o quê. Talvez morrer não doesse tanto se fosse para as pessoas em Gaza se sentirem apoiadas.
E quando sentiu seu corpo desfalecendo de tanta tortura e dor, quando a vida ia lhe fugindo, foi embora com o desejo de que as pessoas percebessem que não é importante ter uma vida “certinha”, mas sim ter uma vida que ajude quem precisa. Aquela frase ficou na sua mente nos últimos segundos: “Será que as pessoas vão aprender algum dia?”
Ana Santos, professora, jornalista
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