2 Contos: Conto "TENSÃO E GOZO" e Conto "O destino de um Homem"
- portalbuglatino
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Conto "TENSÃO E GOZO"
Os comentários ferviam. Ele seria preso.
- E seria? Tinham passado tantos anos...
As pessoas comuns não conseguiam deter a emoção – para o bem, para o mal.
- Eu não vou sobreviver a essa ideia, a essa injustiça...
- Morra quem mandou prender!
- Eu prendo e arrebento!
De dentro do território da realidade, dos fatos, ela via de discursos histéricos,
até a guinchos descontrolados. Um tinha sido mandado por Deus para nos abençoar com suas
ordens, na Terra – pobre Deus; outro tinha se construído como intocável e agora, sem a
proteção da mentira, mostrava todo o ridículo da situação: Deus, Pátria e Família sempre
tinham sido apenas nomes, apenas palavras jogadas aos ouvidos dos bobos, em relações onde
só existia interesse próprio, dinheiro, fuga de capitais, lavagem, furto, desvio, golpes – até de
estado (!).
As redes sociais ainda se ressentiam da verdade. Aqui e ali, vozes patéticas se
levantavam para tentar criar contrainformações, desinformação - em alguns casos, maluquices
– tudo pipocando diante de gravações e provas periciais indiscutíveis.
- Ele não poder preso! – Ele tem que ser preso!
O fato de que houve inúmeros desvios nem precisava ter sido tão visto e
visitado, já que estava em todas as manchetes, artigos e reportagens - mas a população
parecia ter dificuldade em parar, abrir olhos e ouvidos; entender. A emoção parecia a mesma
de alguns fins de novela – quando as novelas tinham bons atores, claro. Quem matou Odete
Roitman parou o Brasil. Era uma ficção – mas todos sabiam disso. O problema é que agora
parecia que convivíamos com milhões de pessoas que se negavam a ver, a saber, a distinguir
realidade e ficção. Apenas não queriam; não suportavam a ideia de terem se enganado, se
iludido.
- Dissonância Cognitiva é isso, não é?
É. Lá está o fato insofismável de que a pessoa te enganou. Não. Lá está o fato
insofismável de que a pessoa que te enganou, continua te enganando e você - nada! Continua
teimando e renegando o fato, a realidade, só porque parece incompreensível que você
também seja enganável.
- Meu marido nunca me traiu, você está mentindo e quer acabar com meu
casamento!
- Ahn?
Pois nesse final de semana – a começar de hoje – cada minuto será uma
expectativa. Um ex-presidente pode ser preso por crimes – um rosário deles e seu
companheiro - um estranho pastor que grita, guincha e vocifera – vai finalmente sofrer
consequências judiciais por tudo o que de sua boca já saiu.
O problema da consequência é que ela vem sempre depois. E tenha sido essa
frase dita por personagem de Eça de Queiroz ou do Barão de Itararé, ela é perfeita pra esse
suspense à brasileira. Trump vem a público e diz que é muito bom em pessoas e viu que seu
amigo brasileiro é um bom homem. Bem... ele não é nada bom em ler pessoas porque o cara
não é, nem nunca foi boa pessoa. Aí já seria risível, senão fosse terrível. Vieram taxações,
castigos, lei Magnitisky para quem está apenas aplicando a lei do País, no País, ridiculices,
tolices de todos os tipos, maluquices, sandices, golpes e fanfarronices. Gente rezando,
xingando, se contorcendo e chorando.
E nós aqui: assistindo!
- Ele não poder preso! – Ele tem que ser preso!
- Política, política... em que se transformou a política, além de tensão e gozo
simultâneos? Aristóteles, hein? Deve estar “roendo as unhas”: a política não é apenas a arte
de governar, mas a ciência que busca a felicidade humana através da vida em comunidade, da
organização da cidade (pólis) e da promoção do bem comum.
- Tsc, tsc, tsc... longe, longe do que a gente vê...
Tensão e gozo, entre o tic tac do relógio do tempo e o “toc toc“ da Polícia
Federal naquela porta específica – a que tira o sono dos malandros e enganadores do tipo
“amém Senhor” – entrega tudo pro Trump, rasteja pra ele, lambe aqueles pés podres e
esquece que aqui é Brasil...
- Ele não poder preso! – Ele tem que ser preso!
- Ah tem! Tem sim! Com certeza tem!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto "O destino de um Homem"
Deixa eu te contar pequenas histórias. Daquelas que a gente adorava ouvir quando era criança e estava na cama, aconchegada e quentinha, pronta para dormir. Ou que a gente amava ouvir, no final do almoço ou do jantar, contada pelos mais velhos, de forma pausada, serena, com sorrisos tristes ou sofridos e aqueles olhos procurando tão longe no espaço que nenhum de nós conseguia alcançar. Histórias que nunca sei contar da mesma forma. Sempre esqueço algo, ou acrescento algo. E nunca terminam. É a história de um homem que foge, escondido da mulher, uma mulher grávida, mais dois filhos pequenos, vivendo na casa dos pais. É isso, ele foge, mas não para a abandonar. Foge para viajar para longe, por alguns anos, para voltar com dinheiro suficiente para poderem sair da casa dos seus sogros e começar um trabalho independente. Volta, com esse dinheiro, sabendo que só assim conseguiria sair do trilho da vida que o esperava. E saiu. Só sabia trabalhar, nos finais de semana ia às festas e às feiras, conhecer gente, saber como eram os negócios, vender ou comprar gado, vender ou comprar terrenos. Cheirava a vida real, a gado, a terra. Tinha olhar de gente, poucas palavras, um coração gigante. Saiu para o mundo com um objetivo humano e cumpriu. Cumpriu uma vida. Uma vida inacreditável. Esta é também a história de um outro homem. Desde cedo aprendeu que problemas eram resolvidos por seus pais e por isso era comum vê-lo sorrir quando ouvia alguém falar que tinha um problema. Não vos sei dizer se as suas decisões de vida vinham das suas opções ou se eram decisões que o pai o convencia, misturadas com decisões por vontade de conseguir o que outros conseguiram. O que sei é que nunca vi este homem resolver nada sozinho. E no entanto, nunca lhe faltou nada. Também viajou, para longe. O que se sabe é que fez filha, teve vários relacionamentos. Um em cada lugar que visitou. Depois de muitos anos voltou. Tem algo que ele aprendeu nas viagens que ainda ninguém compreendeu porque todos esperavam que ele viesse melhor, mas a sensação que têm, de cada vez que o encontram, é que veio diferente, frio, calculista. Parece que perdeu o coração pelo caminho. Outra história, outro homem. Menino rico, com luxos desde pequeno. Viagens, coisas materiais, acesso à cultura, o que quiserem imaginar, ele teve. No início da sua idade adulta, vendo seus amigos igualmente ricos, viajando para a Europa, decidiu que também queria e sabia que no caso dele seria ainda melhor já que tinha família em vários países para o acolher. E assim foi. Vendeu as coisas que seus pais lhe compraram dizendo que eram suas, que eram suas decisões e partiu para a Europa para fazer um curso. Vivia e estudava num país, passava férias noutro, viajava para outros países por mera curiosidade ou para ver amigos. Parecia vida de filme. Foi fazer um curso mas acabou fazendo uma filha. Voltou a meio do curso para ser pai no seu país. Não soube mais nada dele durante décadas. Quando o voltei a ver, nem o reconheci. Não fisicamente. Por dentro. Mudou. Completamente. Não sei o que o fez mudar mas deve ter sido algo muito violento porque deixou de ser real. Virou uma pessoa artificial. Se fosse uma máquina eu diria que falta uma peça chamada coração, mas como é um ser humano e um ser humano não sobrevive sem coração, não sei a resposta. E por último a história de um homem com a mesma idade que eu que sempre conheci na sua pequena loja de consertar bicicletas e motos. Durante uns 30 a 40 anos. Sempre sujo de óleo, sempre metido naquele lugar. No meio daquele óleo, daquela imensidão de parafusos, rodas, correntes, guidons/guiadores e travões. Ele ainda hoje continua lá, fazendo a mesma coisa. Nele permanecem o seu jeito carinhoso de receber as pessoas, de se preocupar com elas, de sorrir com aqueles dentes brancos no meio da ferrugem, e aquele olhar meigo. Sem pais, sem mulher. Nenhum apêndice habitual. Mas um coração que bate por todos, esteja você a que distância esteja. Ele não te esquece e o que puder fazer para te ajudar, fará. Hoje soube de mais uma enorme bondade sua. Desta vez dirigida a mim, a 7 mil km de distância e fez sem eu saber. Eu soube por acaso. Você pensa: "Que bom teria sido se estes 4 homens se tivessem conhecido." Eles se conheceram, mas o destino de um homem por vezes é inacreditável, triste, lindo, absurdo ou apenas o seu destino. Por mais que a gente reze, deseje, estimule, apoie, conviva é o destino de um homem e só ele o faz.
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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