
Conto “AULA DE POLARIZAÇÃO
Essa semana corri feito louca pra não discutir com minha vizinha, mas confesso que foi difícil. Na verdade, ficamos em casa, uma acalmando a outra, uma falando pela outra para que ninguém nervoso ou momentaneamente sem paciência fosse ter com ela.
Despistamos, procuramos outros interlocutores, fingimos que não entendemos os “foras” – todos terríveis. Mas fica a pergunta: a polarização tira mesmo as pessoas da realidade da vida ou é apenas uma esperteza?
Ah! Você deve estar achando que estou falando de política. Mas não. Estou falando de você prestar solidariedade a um vizinho e ao pedir o que estava no nosso acordo, receber 2 quentes e 3 fervendo da pessoa presente no momento em que ele estava sendo firmado. Pois é: meu vizinho não está podendo se fazer presente e sua representante resolveu cair matando.
Se vocês pensarem em política, porém, acho que acaba sendo a mesma coisa porque todos os ataques, tudo o que é falado é imaginário. Brasília nisso é impressionante! Portanto, num dado momento, o que tinha a participação da “vizinha representante” começou a virar “não quero falar com você agora” e tinha sempre um milhão de motivos. Ao insistirmos – a coisa pegava fogo. Num instante íamos para “você não vê que não posso, que não tenho nada a ver com isso, não é problema meu” – exatamente o que aconteceu na pandemia, lembram?
Igualzinho a bater na porta do gabinete do político que você votou, ele nunca poder te atender e mandar alguém “te despachar”. Mas, igualzinho à política, fomos buscando alternativas e achamos um interlocutor muito melhor, que nos ouviu e tentou ajudar de verdade. Claro que na política não acontece nada assim, de boa vontade, infelizmente. Mas na minha vida real apareceu e conseguimos continuar ajudando, sem levarmos nenhuma “rasteira”. Resultado: Aqui, como lá em Brasília, tem gente que na hora de pedir faz aquele “olho de por favor”! Depois, na hora de cumprir a sua parte e pensar no povo, só quer saber de seus problemas. Por isso que tem tanto político que inventa mentiras – que agora tem o nome de fake news pra disfarçar e parecer chique, meio gringo – e nos enrolar! Que colocam Deus como o “costas largas” do universo pra abusarem em seguida. E pra todos os excessos, chamam o nome Dele (bastante em vão, aliás). Aí não tomam vacina, discordam da ciência, inventam acusações, dizem que não vão fazer o que deviam fazer e que a culpa disso – claro – é de quem fica apontando a realidade da vida.
Por nossa sorte, conseguimos uma aliada que reconheceu que estávamos ajudando numa emergência e nos acompanhou na resolução de tudo. Mas na política, meu amigo, muitas vezes te dá aquela vontade de chegar na “beirinha da Terra plana” e perguntar: - Quem foi que votou em você, hein? Porque esse sim quero entregar na mão Deus pra Ele olhar bem na cara e não esquecer nunca mais! Oxente!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O mesmo espírito”
Ana estava cansada, mas o dia tinha sido incrível. Pela manhã deu 4h de aulas na faculdade, sobre sociologia e psicologia no desporto. Ama dar essas aulas. Os alunos são super interessados, desenvolvem boas conversas – construtivas e inteligentes. É uma maravilha. Quando está saindo de carro e ouvindo música, não tem vontade de falar e o corpo começa a ficar pesado, cansado. Como a noite anterior é uma noite de consolidação do que tem preparado, de tensão porque quer dar o máximo de si e quer que aprendam o que não vão aprender noutros lugares, acaba por dormir leve, tensa e pouco. Chegaram a rir dela muitas vezes. “Ficar nervosa e preparar-se tanto para dar umas aulas? Ahahaha” ou “Nunca pensei que um professor se preparava para dar aulas.
Na hora de almoço, fazia sempre uma paragem num espaço com um boteco/pé sujo/tasca a meio da viagem. Amava comer ali. Quando tinha muita fome, pedia uma sopa de lavrador, um panado no pão que vinha com uma folha de alface e um sumol de ananás. Quando tinha menos fome, era o pão com panado e alface e o sumol. Como amava aquela sopa. Parecia que estava em casa. E o panado era frito mas tinha um sabor tão maravilhoso que valia a pena a asneira. E o sumol, o sumol, o sumol. O sabor de tempos de criança, sabor a família, sabor a férias. Perfeito almoço. Saía dali nova e rápido porque tinha de fazer uma viagem de uns 60 km para as aulas de mestrado. Das duas da tarde até à meia-noite, ia ter aulas seguidas, com pausa de uma hora para jantar. As aulas interessantes e inovadoras a deixavam com a mente viajando, pensando em novas possibilidades para o seu trabalho e para a sua vida. Mas as aulas mais monótonas ou que não traziam nada de novo, davam sono e ela obrigava-se a ver ali algum interesse. Paragem para jantar, com os colegas sempre marcando um novo restaurante, com maravilhosos petiscos. Aquela cidade era cheia de comidas deliciosas e todos os restaurantes eram espetaculares. Que cidade, que comida.
As aulas após o jantar eram maravilhosas, repletas de assuntos importantes, interessantes e debates muito construtivos. Nem apetecia terminar. Mas tinha ainda 60 quilómetros para chegar em casa. Preferia evitar a autoestrada para poupar algum dinheiro. Depois de almoço tinha de ir pela autoestrada para chegar a tempo, mas a volta para casa podia ser pela estrada nacional, que não tinha trânsito nenhum. Devagar, ouvindo música, deixando fluir toda a novidade que ouviu nesse dia. Sua mente pipocava possibilidades, descobertas, o futuro.
As amigas e ex-colegas da faculdade começaram a estranhar ela não ir mais aos jantares e noites de bares e discotecas, todas as sextas e sábados. Algumas chegaram mesmo a acusá-la de se achar importante – por dar aulas na faculdade e estar a fazer o mestrado. Teve uma que chegou a divulgar a piada que Ana estava juntando dinheiro para o enxoval secreto. Tinham feito a faculdade juntas, trabalhos e projetos em conjunto, cheias de ideias, cheias de sonhos. Mas, depois da faculdade, parece que travaram. Os sonhos delas viraram jantares, festas e viagens. Ela adorou viver um tempo essa vida – tinha curiosidade e pode satisfazer sua curiosidade. Mas tinha muitos sonhos que se foram construindo quando preparava as aulas da faculdade e quando ouvia os professores do mestrado. Eram mundos enormes que se abriam, eram respostas e provocações às suas interrogações, eram possíveis caminhos que se descobriam. E era algo dentro dela que lhe dizia que era possível. Que existiam milhões de coisas a fazer. Para ela nunca existiu o pensamento de fazer a faculdade para encontrar um trabalho e depois curtir a vida com viagens, restaurantes e festas. Ela se sentia com o mesmo espírito com que foi a pé para a escola a primeira vez, junto de casa dos pais. Com o mesmo espírito com que foi no primeiro dia de trem para estudar na cidade, com 10 anos. Com o mesmo espírito com que foi para outra cidade viver para poder fazer a faculdade. Com o mesmo espírito com que mudou de país. O espírito de encontrar respostas, soluções, formas de resolver os problemas do mundo, de melhorar a vida das pessoas. As pessoas, sempre as pessoas. Precisam da sua contribuição e quer corresponder. Mesmo das pessoas que decidiram dedicar-se a fazer viagens, festas, aguardando que chegue o fim da vida. Mesmo das que deixaram de lhe falar por ela agora “ser importante”. Mesmo daquelas que tentam atrapalhar.
Ana Santos, professora, jornalista
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