2 Contos: “APENAS UM POUCO DE VIDA REAL” e Conto “Que país é este?”
- portalbuglatino
- há 3 dias
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Conto “APENAS UM POUCO DE VIDA REAL”
Não que ela o amasse menos. Apenas o via pouco. Naquele mundo – cheio de contornos online, digitais, impessoais, herméticos, solitários e individualistas – talvez grotescamente indelicados, instintivos e com poucas emoções envolvidas – talvez menos afetivo – olhar aqueles olhos que mal se acercavam e começavam automaticamente a falar e isso era o bom, a noção de nítido que deixara com ele, sua herança de milhões, já dividida, partilhada, compartilhada - era aconchegante.
O ofício de falar não precisava mesmo ser passado de pai para filho: bastava alguém se debruçar sobre outro alguém, contando as histórias do mundo, as fábulas, as conversas, os segredos - e a mágica acontecia.
- Esse é o Banco Itaiú!
- Não. O Banco se chama Itaú.
Com três anos, olhava os outdoors da cidade e os “decifrava”.
- Pode ir, que eu vou ficar aqui falando com a minha Dinda.
E os assuntos se emendavam, sucediam-se. Inimagináveis. Passavam da vida real para a fantasia na mesma velocidade. Sua alegria e tristeza eram claramente faladas e eu as ouvia e as tentava entender. “Amavam o Homem Aranha”, ele pedia para “dirigir o carro” na entrada da sua rua, ficavam apenas encostadinhos um no outro, vendo TV. Se acostumaram a dizer claramente “eu te amo”. Nada de enrolações.
Quando as novas gerações perderam a proximidade nascida do falar entre si? Do se exporem? E como podem extravasar a dor, se não se expõem? Como o nível de estresse pode descer, se nunca falamos das causas?
- Tantas pessoas jovens no mundo estão tristes, pensando que estão deprimidas e acabam deprimindo por não agirem contra a própria tristeza...
Olhou para aqueles olhos pretos como a noite de sempre, a covinha bem desenhada naquelas bochechas que ela adorava “sapecar uns beijinhos”, quando ele era criança. Era um adulto, agora. Se viam muito menos, mas o ambiente de calma lá estava - inteirinho. Era a vida real – maior do que todas as vidas, como seria de se esperar. Havia tanta tristeza no mundo porque a vida digital só faz sentido a partir de uma vida real e as novas gerações não entendem que somos incompatíveis com o não toque humano, o não amor, a não convivência – como na vida online.
- Espero que ele perceba que existem coisas que transcendem palavras. E elas apenas habitam. Nos habitam. E é isso o que importa, que nos preenche – a emoção de vivermos.
Para essa nova geração – bem menos interativa de coisas reais – que pena... As vezes você só precisa de uns poucos minutos, uma avalanche de palavras saídas da boca de um homem que você viu bebê na sua vida, para que o tempo da vida real fique iluminado, encantado, vivo – um tempo que sabe sentar e apreciar uma boa conversa...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Que país é este?”
As ruas da aldeia eram tão compridas e longas, quando as atravessava a pé ou de bicicleta. E algumas zonas pareciam pertencer a outra cidade, estado ou país. Mudava a cor e o tamanho das casas, mudavam os jeitos de fazer as coisas, mudavam as famílias, mudava o que acontecia ali.
Algumas destas ruas, durante muito tempo, conheceu só pelo que ouvia falar. Depois começou a passar por elas quando ia no caminhão/camião do seu pai, para distribuírem a mercadoria. Depois começou a ter autorização para ir a pé e depois também podia ir de bicicleta. Tudo com muitos avisos, muitos cuidados. Tempos em que não existia o celular, em que se ia com o dinheiro no bolso ou amassado na mão, para não o perder. Em que tinha medo de esquecer as 3 ou 4 coisas que tinha de comprar, ou dizer a alguém.
Sentia medo. Medo de se perder, medo de não saber chegar ao local que precisava chegar, medo de não saber dizer o que ia comprar, medo de perder o dinheiro, medo de ser enganada e não levar o troco certo, medo de passar vergonha, medo de chegar a casa e ter de dizer que não foi capaz. Existia um eco repetitivo, um aviso permanente: “se alguém, seja quem for oferecer carona, nunca aceitem. Mesmo que diga que é amigo do vosso pai, ou amigo do avô, ou seja muito simpático, ou ofereça coisas.” Passou a ter medo de olhar as pessoas da rua, de lhes sorrir, de responder às suas perguntas, aos seus sorrisos, aos seus desejos de bom dia. Sair de casa era como se estivesse saindo da estação espacial para o espaço, sem amarras. Como nadar no meio do oceano sem ter terra à vista ao seu redor. Nada tinha de relaxado. Não parecia uma coisa boa. Não era uma coisa boa.
Mas naquele dia, a rua virou um lugar bom. Eram umas 22 horas da noite, estava junto com seus pais e seus irmãos, assistindo TV e veio aquele estrondo. Um som que nunca mais esqueceu. Assim como ver sua porta de casa, a porta de entrada do apartamento, cair como uma folha no chão e aqueles caras entrando e xingando o pai. Atiraram abaixo sua porta de casa, tentaram bater em todos enquanto xingavam. Tudo por causa de um problema de estacionamento na comunidade. Conseguiram fugir, sair de casa, caminhando pelas ruas. As ruas que sempre a assustaram de repente eram suas aliadas, sua proteção. O ar, a chuva, os olhares de compaixão. De repente, todos os medos, mais o medo de vergonha, esfumaram-se. Não era ela a fazer algo errado. Era ela e sua família inteira a fugir de uma enorme injustiça e sendo muito maltratados por causa de algo pequeno. Isso os aproximou muito. Passou a preocupar-se com os pais, os irmãos, passou a falar sempre para onde ia e a cumprir os horários que dizia que ia chegar em casa, para ninguém ficar preocupado e, se por acaso tivesse algum problema, a família iria saber pelo seu atraso.
Medo de estar na rua, medo de estar dentro de casa, medos aprendidos, medos vividos, assuntos a enfrentar pela vida fora. E eles voltavam, teimosos, quando dirigia carros pelos Estados Unidos, ou pelo México, no metrô de Paris, ou de Londres, ou de Pequim. Na solidão do quarto de hotel, fosse onde fosse que estivesse. E sempre aquela sensação de que não podia esquecer o que ia fazer, de não ser capaz, ou de que tinha de ter cuidado com estranhos, não se podia enganar com as pessoas.
O mundo dá voltas e mais voltas e ela conseguiu um trabalho num país que diziam que era bom. Todos os dias, na rua, ouvia as pessoas se tratarem de formas incríveis: “oi amigo”, “oi amor”, “oi tia”, “oi meu irmão”, “que é isso pai”, “oi querida”.
- Gente, que lugar é este? Eu quero viver aqui para sempre. – comentou para um senhor, que estava do seu lado aguardando o ônibus chegar.
- Quer? Porque não vive?
- Vou viver. Como se chama este país?
- Brasil, minha querida. Que Deus a acompanhe.
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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