
O tempo que passei na TV me roubou de muitas pessoas que adorei rever – entrei na sala de espetáculo adorando cada (re)encontro, a reforma da Sala do Coro, no TCA, a praticidade técnica do teatro e a curiosidade extrema de saber como Fafá Menezes - grande atriz que é - conseguiria costurar uma dinâmica para desenhar três mulheres como Lady Macbeth, Maria Bonita e Medéia numa mesma linha.
Indiscutivelmente, o palco despido se vestiu com a luz – primorosa. Da mesma forma, indiscutivelmente prático, plástico e lindo cada detalhe dos elementos cênicos e figurino (as bacias amassadas e velhas...). Indiscutível também a escolha da trilha - impecável. Aí aponto um detalhe que pode ser revisto ainda hoje: A saída do som está estável e adequadamente calibrada para o público, mas quando Fafá está em movimento passa a haver uma competição entre as duas fontes sonoras. Portanto, recalibrar o volume da trilha reequilibra as coisas.
Fafá é uma atriz que rende mais do que uma crítica. Muito mais. Um talento indiscutível. A dedicação dela à arte foi mesmo a semente que gerou este espetáculo. Nunca tive o prazer de trabalhar com ela (talvez porque eu seja passageira de três viagens, entre teatro, cinema e TV). Minha contribuição é que Fafá não perca de vista que essa mesma trilha sonora primorosa se volta contra ela a cada movimento de cabeça ou de corpo que a tiram do núcleo sonoro – e houve perdas de algumas falas, ontem. Outro detalhe importante é repassar a pontuação do texto porque há um pequeno detalhe na prosódia da fala que faz muita diferença. Nas vírgulas, a gente “puxa” a voz “para cima”, para dar a ideia de continuidade. De alguma forma, algumas vírgulas tinham a prosódia dos pontos e Fafá fazia um trabalho em busca do peso das palavras, quando bastava apoiar a intenção da fala, na pontuação.
Nada disso tira a força do espetáculo, a dramaticidade. Nada tira a sensação de aprisionamento que a culpa traz e que Fafá tão bem desenhou. Acho mesmo incrível como alguns sentimentos nos encurralam em nós mesmos. Ver Fafá andando em círculos me lembrou os animais enjaulados sob maus tratos do dono. No caso das três mulheres de Fafá, a jaula estava na própria mente. Eu talvez até fosse mais longe na criação de emoções mais primitivas, como o ódio e o desejo de vingança, por exemplo. Fafá aí poderia ocupar zonas emocionais que a sociedade tem medo de dizer que sente e seria sensacional.
Tenho estudado muito neurociência por causa da interpretação de textos dramáticos. Tenho hoje uma visão mais clara de um caminho mental que o ator pode usar para ajudar a construir uma compreensão, uma construção, uma expressão de ideias. Funciona muito bem.
A sensação, ao sair, foi a de que o teatro tinha cumprido seu papel e eu tivesse que passar um tempo com minhas ideias. Se uma peça te toca ao ponto de ter que parar e pensar, foi um espetáculo intenso. E foi. Mulheres de Sangue faz com que as mulheres se perguntem até que ponto podem se deixar ir, até que ponto elas podem conduzir ações, até onde vale à pena ir com a vingança, até quando teremos que limpar nossas mãos do sangue das nossas omissões, de nossas verdades manipuladas, das nossas justificativas e evasivas. Uma comemoração que vale 30 anos.
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
30 anos de trabalho, principalmente para quem já sabe o que isso é, faz curvar, admirar e respeitar qualquer profissional. Numa profissão “sem rede” como a de atriz isso é ainda mais admirável. O Bug Latino agradece o convite e a honra de poder testemunhar um momento tão importante, tão intenso e tão generoso. Um percurso que sempre inclui outras pessoas, torna-se belo quando todos estão presentes. Assistir à peça numa das últimas filas inclui todos na peça. Porque todos se viam ali. Fazer, com os outros, torna a vida tridimensional e os momentos vividos deixam lastro. Você sempre poderá recorrer a eles para sentir a mesma felicidade. Muito bonito assistir a tudo isso.
A sala do coro do TCA é um espaço que faz lembrar o Teatro Carlos Alberto no Porto, em Portugal. Bonito, organizado, com bancadas retráteis, possibilitando vários formatos de espetáculo. Simpatia e conforto. Muito legal.
Se de alguma forma o Bug Latino puder contribuir para um espetáculo tão importante, diria que, para quem está nas últimas filas, as ações realizadas no chão, próximas da plateia, se perdem um pouco por ficarem escondidas. Ajudaria diminuir o som da trilha, sempre que a atriz fala porque, não sei se foi por eu ser portuguesa, tive dificuldade em entender algumas palavras, algumas frases. A última contribuição precisa de uma introdução para que possa ser entendida. Trabalho profissionalmente com corpos, há 40 anos: como atleta, professora, treinadora. Ver em ação um corpo equilibrado, alinhado, com conhecimento exímio dos planos, dos tempos, dos ritmos, é um momento muito especial. Sei o valor do que vi, sei o valor do esforço que é necessário para termos presenciado tamanha qualidade, sei o quão raro é existirem atrizes com estas qualidades corporais, no mundo. Esta peça devia ser obrigatória para alunos de dança e de teatro. Por isso a minha última contribuição seria a seguinte: um corpo preparado com profissionalismo é maravilhoso. Para esse corpo virar os corações do avesso de quem o assiste, ele precisa se conectar com a direção e profundidade do olhar, com uma respiração sonora que acentua as emoções, com fluidez funcional na ligação dos movimentos. A técnica é ainda mais importante quando ela é perfeita mas fica diluída na intenção, na ação, quando não é perceptível mas profundamente existente. E eu diria que apenas falta isso para este espetáculo ser um sucesso em qualquer parte do mundo. A atriz não precisa marcar, acentuar as habilidades técnicas que possui quando, como é o caso, é primorosa. Parta para a ação, emoção, porque todo o seu repertório vai junto, de forma mais natural e mágica e o público ficará rendido mais profundamente.
Cenário e figurino encantam. Delicadeza, cores tranquilas, originalidade, simplicidade, elegância e parcimônia. O pacote completo. Parabéns. A iluminação é também encantadora e teve momentos divinais. Diferente, ousada, mágica, envolvente. Parabéns.
“Debaixo do meu verniz de educação, existe o cão selvagem.” Esta frase de Zygmunt Bauman, está escrita nas informações sobre o espetáculo e assusta de tão verdadeira. “Não se provoca um animal ferido”, “não se mexe num enxame de abelhas”, ”não se olha de frente para um cão raivoso”, são algumas das frases que se ouvem em Portugal quando se quer alertar as pessoas para o perigo de “acordar o cão raivoso” de alguém. Isso não nos deve impedir de fazer o nosso caminho, mas nos avisa do risco que corremos. O ser humano é capaz de qualquer coisa, boa ou má. Que os exemplos maus que a toda a hora surgem nos façam refletir. Acho que estas 3 mulheres da peça iriam ficar impressionadas com o que se faz hoje em dia e isso é terrível de se constatar. As circunstâncias e os momentos, os desejos, podem mudar completamente uma vida. Podem provocar na pessoa a passagem para lugares sem volta. Andar na vida perto da “linha vermelha”, facilita isso. Possamos todos ser sempre capazes de fugir dessa “linha vermelha”.
Ana Santos, professora, jornalista
Comentário de Moacyr Motta:
"Olá. Sim, fui ver Fafá ontem. E vocês foram precisas na crônica. Felizmente acertaram os pontos apontados por vcs. A música não atrapalhou a fala, ela estava com corpo mais solto, uma narrativa mais adequada com a pontuação. Ela emotiva e entregue à Medéia, Lady Macbeth e Maria Bonita. Pena poucas pessoas na plateia."