O National Theatre at Home tem aberto seu sinal e colocado à disposição do mundo obras primas. Desta vez, Peter Shaffer nos apresenta Amadeus – quem viu no cinema na década de 1980 nunca mais esqueceu, tenho certeza e a montagem para teatro não deixa a dever rigorosamente nada ao cinema.
Primeiro, a história dá calafrios – a inveja é talvez o sentimento mais empobrecedor que existe e vê-lo ser descrito pela boca do invejoso é cruel, terrível, amedrontador – porque temos medo de ocupar o papel do invejoso tanto quanto de ser tão invejado a ponto de ser destruído, ao mesmo tempo em que a posteridade destrói ao invejoso, ao imortalizar o gênio do invejado, afinal.
Amadeus é Mozart. Wolfgang Amadeus Mozart, o gênio destruído por Antonio Salieri – o medíocre de sucesso, que sabia que o destino se curvaria a Mozart. Parece com alguém que nós conhecemos? Muitos, certamente! Então isso não está perdido nos “séculum seculorum”? Não. Não. Não.
E historicamente todos se calam. Ninguém resiste com muito vigor à força do mal e quando ele reina, parece que se abrem os espaços. Não vê a gente, aqui nesse “Brasilzão” de meu Deus? 80 mil mortes e é pouco para o que se prevê. 2 milhões de infectados pela inoperância absoluta – e a nossa voz que deveria estar na rua e foi calada pela pandemia, está afônica porque os outros poderosos assistem a tudo – e aí, o fato de assistirem é nefasto.
Mozart viveu e fez história desde o século XVIII. Sua música, na vida real e na peça preenche o espaço da divindade. E ver que ele vai ser arrastado para a margem apesar de sua genialidade, dói à medida que a extrema qualidade do elenco também nos arrasta para o mesmo nível de impotência – ninguém consegue se defender. Eu parei de ver, almocei, enrolei. Meu Deus, é tão difícil ver a aniquilação de alguém – me rendi e vi aterrada a outra metade do espetáculo.
O nível de qualidade é altíssimo, com primorosos trabalhos de voz falada, voz cantada, corpo cênico, música, interpretação, pontuação e pausas, cenário, luz. Tudo funciona de maneira primorosa e essa história – tão antiga - é contada sem parecer a chatice dos programas policialescos do Brasil, mas mostrando a beleza com que a arte revela a nossa falta de grandeza.
Para quem não viu Amadeus, é coisa obrigatória mesmo. Para quem não conhece a sua história, fica ali bem próxima da tragédia de Otelo, com a piora de que Mozart era uma alma infantil, uma criança que queria apenas se divertir na vida e que foi totalmente quebrada em pedaços. Para quem está esperando as aulas voltarem, vale cada segundo. Vale discutir na sala com a professora, vale conversar com os pais em casa. Porque precisamos evitar abrir a porta da vilania em nós – isso nos faz ver a morte de Marielle e de mais milhares de brasileiros que são assassinados como coisa normal e não pode mais ser normal morrer tão fácil no Brasil. De nada. De bala e de doença. E esta proibição nós temos que dar. Nós é que temos de dar.
Não percam de ver. Não percam de sentir. Não percam de nunca permitir. Não percam de reagir. Nenhuma violência, nunca mais, na nossa frente. Nem se for a polícia e a gente tiver que chamar a polícia pra denunciar a polícia, filmar a polícia e mostrar na TV. Nem que seja o político, nem que seja o padre, o pai. Qualquer violência é ultrajante e a peça desnuda isso em nós.
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
É sempre maravilhoso recordar a vida palpitante de Wolfgang Amadeus Mozart, socialmente um eterno menino sem interesse em cumprir regras sociais, interiormente um gênio absoluto. Será sempre espantoso ouvir suas obras, escritas considerando o público Deus. Faz parte de um grupo restrito de compositores que dominaram o precioso que não é visível na vida, mas que nos atinge fisicamente, nos transforma, nos salva.
Pode ser um incômodo ou até um “crime grave” ter talento, capacidades, ser diferente, ser mesmo um gênio. Se além disso, não souber ou não aceitar as regras sociais impostas, se torna mais do que suficiente para que um gênio não consiga trabalho, não seja aceite. Mozart, ainda teve maior infelicidade. Além disso tudo, teve uma sombra constante – Salieri - que não descansou enquanto não destruiu completamente a sua vida. Para quê? Para ter espaço para si? Para ser ele o eleito? Ingenuidade cega da inveja. Viveu mais de 30 anos, após a morte de Mozart, sendo obrigado a ouvir as obras do gênio por todos os lados. Existem pessoas, feitos, que não se matam nunca, nem com a morte física. Por mais que a inveja tente impedir, o que precisa ser, será. Não adianta a maldade. Pode impedir a felicidade terrena, pode impedir uma quantidade maior de obras – todos perdemos - mas a genialidade nunca poderá ser impedida de florescer, de surgir. O que mais poderia ter criado Mozart, se não tivesse existido um Salieri? É triste pensar no que se perde...
Será sempre muito amargo vermos, ouvirmos e sabermos o valor das obras primas de grandes gênios, sabendo o quanto sofreram sem necessidade, o quão miserável foi sua vida sem nunca terem conseguido a glória, nem tão pouco imaginado o quanto hoje amamos o que criaram. Quem sabe eles ouvem e sentem isso por onde andam...seria justo...
A mentira, a hipocrisia, a manipulação permite que Mozart confie em Salieri. Incrível. Terrível. Uma trapaça/ratoeira terrível, ao ponto de Mozart desabafar, pedir ajuda, se lamentar, contar seus segredos ao seu maior inimigo, que lhe impediu sucesso atrás de sucesso. Precisamos ver esta peça, estas coisas, mas nosso estômago revira de nojo, de impotência, de sabermos como isto existia, existe e existirá. Como pode alguém querer impedir tamanha grandeza? Se não se consegue ver essa grandeza em nenhuma obra de Mozart, por desconhecimento talvez, isso será impossível ouvindo Requiem.
Que peça de teatro! Uma extrema complexidade de direção, de atuação, de sincronização. Palco móvel que permite várias possibilidades. Muitos profissionais em palco, atores, músicos, figurantes. Os atores falam muitas vezes ao mesmo tempo que os músicos tocam, tudo joga, tudo está certo, tudo fica belo. Timings perfeitos, marcações perfeitas. Sobra espaço até para algumas brincadeiras sutis e de bom gosto. Vê-se que houve muito trabalho. E tudo está perfeito.
Um dos personagens principais – Salieri - é também narrador e isso é muito interessante e permite muita fluidez. E é muito belo porque várias vezes Salieri explica a genialidade das músicas de Mozart, à medida que são tocadas. Muito belo. Os dois protagonistas, atores muito diferentes e igualmente incríveis. Muito expressivos, dominam a palavra, os tempos, o ritmo, o palco. Ver uma peça destas ao vivo deve ser algo inesquecível.
É talvez a última vez que temos a possibilidade de assistir a uma peça com esta qualidade, gratuitamente, da National Theatre Home. Esta está disponível até ao dia 23 de julho de 2020. Acho que vale a pena tentar ver. Longa, por vezes um pouco difícil porque tem momentos de diálogos muito rápidos e complexos, mas é um privilégio que não se deve desperdiçar. Acredite. Tem tradução para quem desejar.
Ana Santos, professora, jornalista
Amadeus
Dirigido por Michael Longhurst (Constelações, O mundo da extrema felicidade), Lucian Msamati (Fundo preto de Ma Rainey, 'Mestre Harold' ... e os meninos) interpreta Salieri - com acompanhamento orquestral ao vivo de Southbank Sinfonia.
Sinopse - Música. Poder. Ciúmes. Bem-vindo a Viena. Wolfgang Amadeus Mozart, um jovem prodígio barulhento, chega determinado a fazer sucesso. Surpreendido por sua genialidade, o compositor da corte Antonio Salieri tem o poder de promover seu talento ou destruí-lo. Tomado pelo ciúme obsessivo, ele começa uma guerra com Mozart, com a música e, finalmente, com Deus.
Link da peça, até 23 de julho de 2020