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Poesia como costume


Não existem melhores nem piores. Poesias são sempre extraordinárias, são sempre testemunhos do mais verdadeiro que existe em cada um. Adote as poesias na sua vida como filhos queridos. As receba em família, em privado, na alegria e na tristeza. A vida tem mais sentido com o costume da poesia. Se acostume.


1. Poesia indicada por Maria Lúcia Levert


“O sal da língua”


“Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém – mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar.

Para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.”


Eugénio de Andrade


2. Poesia indicada pelo Bug Latino


“O ESCRAVO”


“Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha

E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos de batalha

Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.

Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava

Em torno de mim tudo era desespero de espadas estorcidas se desvencilhando

Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava impedindo meus passos

E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.

Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta

Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido

Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor

E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.

Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha

E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me fascinava.

Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz

Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés

Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão, vendo o céu, vendo o chão

Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se movendo...


Aqui é o misterioso reino dos ciprestes...

Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos.

Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu

Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.

É este o misterioso reino dos ciprestes

Que aprisionam os cravos lívidos e os lírios pálidos dos túmulos

E quietos se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas.

Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta

A conversa do meu destino nos gestos lentos dos gigantes inconscientes

Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...

Aqui estou eu pequenino como um musgo mas meu pavor é grande e não conhece luz

É um pavor que atravessa a distância de toda a minha vida.


É este o feudo da morte implacável...

Vede — reis, príncipes, duques, cortesãos, carrascos do grande país sem mulheres

São seus míseros servos a terra que me aprisionou nas suas entranhas

O vento que a seu mando entorna da boca dos lírios o orvalho que rega o seu solo

A noite que os aproxima no baile macabro das reverências fantásticas

E os mochos que entoam lúgubres cantochões ao tempo inacabado...

É aí que estou prisioneiro entre milhões de prisioneiros

Pequeno arbusto esgalhado que não dorme e que não vive

À espera da minha vez que virá sem objeto e sem distância.

É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo

Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero

Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio

Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca dos lírios

Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra que o vento espalha

Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o meu destino

Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre escravo dos príncipes loucos.”


Vinicius de Moraes


3. Poesia de Teresa Vilaça


“O RISO”


“Apenas de longe

avistamos os mortos

em sua última

solitária passagem

Como paisagens distantes

forçamos a vista em

busca de algum detalhe

E no entanto, ainda ontem

estavam entre nós

riam

choravam

chegavam do trabalho

faziam planos

reclamavam

envelheciam.

O que fizeram

O que fariam

Como nós

os que estamos cada vez mais sozinhos

os que perdemos o sentido do riso

os que temos a mente cheia de perguntas:

Quem produziu tanto espanto?

Quem fabricou tanta dor?

Quem empobreceu assim a vida?

E no entanto ainda rimos..

A morte alongou seus braços

cumpre ordens

com a precisão de máquinas

Os números

os números

são apenas cenários

onde a verdade

é a vida que se foi

Qual é mesmo o sentido do riso?

Morrer 80 mil vezes”


T.Vilaça


Salvador , 20 de julho de 2020

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