
Meio bíblico isso... por lá pelo sagrado a gente dá a outra face, se doa, faz o bem sem olhar a quem. Mas é só um lado da teoria, certo? O outro lado, o escuro, é o de quem bate, explora a nossa boa vontade, nos usa. E é engraçado como a nossa evolução espiritual espera que, para além de sermos bons, sejamos também um pouco cegos – talvez míopes – e sigamos o caminho sem perguntas.
Mas eu vivo cheia delas. Como assim, não podemos falar com a pessoa que ela é abusiva? Como assim, continuar sendo generosa quando estou vendo a exploração da minha boa vontade, bem na minha cara? Como permitir, por que permitir que as pessoas sejam injustas, pratiquem bullying, se façam de desentendidas? E por outro lado, que nível de sinceridade ainda é aceitável, num mundo onde as pessoas fingem ser o que não são, o que não sentem, o que não pensam o tempo todo?
Eu sempre falo que antes de qualquer coisa, procuro me perguntar se sou capaz de fazer algo por alguém apenas porque quero, sem me decepcionar com a absoluta falta de noção de quem recebe. O ato inquestionável é que me flagro menos disponível, depois de emprestar coisas minhas que as pessoas avançaram pra roubar com toda a naturalidade, de ajudar pessoas que me ignoraram no momento em que precisei de ajuda, de ser presente e depois viver a mais absoluta invisibilidade – pra não dizer bullying ou mau trato mesmo. As relações viraram “não é comigo não”? No serviço público, no atendimento da loja, no serviço prestado, o novo normal inclui “não posso fazer nada, se der errado”? É um sobressalto, isso. Eu olho o Facebook e me pergunto afinal onde estão os felizes... os da agenda: hoje é o 320º dia em casa, acordo e tomo meu “Moet Chandon com adoque defumado e torradas francesas”... Ahn? Sou eu que estou cada vez menos capaz de ver graça nisso, num mundo onde as pessoas estão nitidamente sofrendo? Num mundo onde damos graças à Deus quando conseguimos dar uma volta no quarteirão e quase todos estarem de máscara? Nada de glamour... é apenas ficarmos vivas, mesmo...
Onde está o dar e receber num mundo onde se fala em vocabulário técnico e eu vejo graves problemas de vocabulário estrutural? Onde estamos vivendo, afinal?
Neste nonsense total, enxergando a “fidelidade galinha” dos homens violentando, brutalizando um sem número de mulheres, gays, trans, pobres, vendo todos como renegados e renegando quem não quer vê-los da mesma maneira, dar o quê, receber de quem?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV
Algumas pessoas sabem dar e não sabem receber. Algumas sabem receber e não sabem dar. Ambas precisam aprender que é um caminho de dois sentidos. Aprender a dar, aceitar receber.
O mundo fala a toda a hora que você deve dar sem esperar receber. Sim, você faz isso por que quer, por que aquela pessoa precisa e por que você é uma pessoa generosa. Isso é claro! Mas essa mensagem de não ser bonito esperar receber, quando se dá, abre espaço aos "espaçosos"...aos que recebem, recebem, recebem e ainda questionam se aquela pessoa continua a dar com a mesma "qualidade". Nunca questionam dar, seja a quem for.
E o hábito de rotular a capacidade de dar como algo que nós não somos capazes, nem temos paciência, nem tempo para isso? Não rola mais não. Muito menos que só uns é que são capazes e que boas pessoas são, também não rola mais não. Todos precisamos aprender a dar e a receber, caros habitantes deste planeta. Todos devemos aprender a saber reconhecer o valor das pessoas que dão em vez de rir da sua bondade. Em vez de as explorar, em vez de as criticar quando elas já não são capazes física, emocional ou financeiramente de o fazer. Isso é muito feio. Também é muito feio considerar inferior quem dedica a sua vida aos outros, considerando que essas pessoas não têm vida e portanto até estamos fazendo um enorme favor. Sério? O que também parece incrível que aconteça é quando as pessoas que sempre dão e em algum momento estão em dificuldades por doença, por problemas econômicos, ou outras situações, ainda assim precisam dar, nunca se considera que é a sua hora de receber. Sério? Sério?
Aprender a receber só acontece se recebermos...
Sim, receber é maravilhoso. Mas experimente dar também. Você não é nenhuma estrela do firmamento. É um ser humano que merece tudo de bom, sim, mas tem o dever de tratar bem quem surge na sua vida. Ou quem não surge na sua vida mas você pode surgir na vida dessa pessoa. Fazer bem às pessoas é bom, ainda é bom, continua a ser bom. Será sempre bom. As pessoas que sempre dão nem sabem receber. Nem sabem como é. Nem sabem como devem se comportar. Vamos mudar um pouco este desequilíbrio? Vamos acordar e tentar equilibrar a vida de todos um pouco?
Ana Santos, professora, jornalista
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