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2 Contos sobre iludir


Conto “O MANUAL”

Ele abriu o Mapa Mundi. Olhou os territórios detidamente. Sorriu. Seguir o passo a passo que entrou para a história como “nazi-fascismo” parecia totalmente tresloucado:

- Mas está dando certo!

O fato de que as pessoas querem ouvir que alguém vai lhes poupar o trabalho de consertar o mundo ajudava muito. Bastava entrar na internet e inventar a coisa mais tresloucada do mundo para falar mal dos governos, do voto, da democracia, da saúde pública, das escolas, das cotas, dos estudantes, cientistas, jornalistas, dos funcionários incorruptíveis, das vacinas, da Terra redonda, de Darwin!

- Qualquer coisa cola, Mano!

Assobiando pelo quarto - com aquela internet de primeira, claro – ele pensava:

- O que podemos dizer aqui? Hummm, que o “ex” não pode devolver o que deve porque “caiu no golpe do time de futebol” – ele passou anos com camisa de time, vai colar! Nem que seja para menos pessoas... Mas essa rejeição é passageira porque as pessoas acham que até a poluição do mundo é mentira! O mundo se acabando em lixo e em água suja e as pessoas acreditam que não tem poluição nenhuma!

- Ahahahahah....

E ria. Ria dos velhos que queriam um mundo no tempo do bonde, esquecendo que nem ir ao médico podia demorar mais do que 15 minutos, atualmente. Ninguém falava, mas todo mundo sabia. Não há tempo. Mas antigamente era melhor, não era? Muito fácil de convencer porque era o “desejo da titia”.

Era isso o que ele vendia – o que não existia mais, o que tinha acabado pra sempre – mas quem queria saber a verdade, gente?

- Otários...

Ninguém o pegaria. Lhe cabia a invisibilidade mafiosa, pirata. Hoje no Brasil, amanhã na Malásia e depois.... quem sabe? Mas a grana, essa sim era bem visível.

TRRRIIIMMM!

- Oi, Excelência, como vai? Plantar mais um boato? Claro, é só pedir! Ahahahah quer que eu diga que os Yanomamis fingem que estão na pior? Que estarem esqueléticos como os judeus de antigamente é montagem? Posso fazer, mas isso vai custar bem caro... Enganar besta, diante de fatos consumados precisa de talento, talquei?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV



Conto “Só as estrelas sabem o que vivem as mulheres”

Ana olha o céu. É noite, não há vento e a temperatura está gostosa. Sentada no chão da varanda de casa observa as estrelas que tanto ama desde menina. Agora observa outras e isso também é muito fascinante. O hemisfério sul realmente troca-lhe literalmente as voltas todas. O que é mais fofo é que agora descobriu um aplicativo no celular, isso mesmo, que a ajuda a identificar as estrelas porque a ursa maior e a ursa menor estão longe da vista apesar de perto do coração. Já imaginaram? Ela não imaginava. É só mover o celular em direção ao céu e lá estão todas as constelações, os agrupamentos, os nomes, tudo, tudo, tudo. E sente uma sensação serena em si. Uma espécie de liberdade. Sempre sentiu isso quando olha o céu. Aquele imenso escuro, repleto de luzinhas, com nomes, que parecem querer lhe dizer algo que ela nunca entende. Mas foram sempre elas que a guiaram, que a protegeram, que de alguma forma sabem tudo sobre si, que tudo viram.

Eram elas que lá estavam olhando para ela, quando saiu, naquela noite, do carro do amigo da faculdade para entrar no prédio. Quando saía com colegas da faculdade ele sempre se oferecia para a levar em casa e esperava que ela abrisse a porta do prédio e entrasse para arrancar com o carro. Coisas diferentes de viver numa cidade e que ela apreciava muito. Era um dos únicos que fazia isso. Apreciava também a relação que ele tinha com uma colega dela – eram namorados. Sempre preocupados com toda a gente, sempre super educados. Por isso naquele dia, vai-se lá saber porquê, ele parou o carro em frente do seu prédio e quando ela olhou para ele para, como sempre, agradecer e sair, a beijou ofegante e colocou uma mão no meio das suas pernas. Enquanto ele se explicava velozmente dizendo que sempre gostou dela e que a desejava muito e que nem precisava deixar a namorada para eles se relacionarem, Ana tentou, da forma mais delicada que conseguiu, retirar a mão dele, dizer que também gostava muito dele mas que também gostava muito da namorada dele e que seria incapaz de fazer algo que a prejudicasse. Tentou dizer que gostava muito dele como amigo. Felizmente ele recuou nas investidas e ela se despediu o mais serenamente possível e saiu do carro. Nesse dia ele não esperou que ela entrasse. Mas ela recorda as estrelas, mudas, olhando para ela como guardas da sua alma. Silenciosas companheiras. Não foi uma noite fácil mas no dia seguinte ao chegar à faculdade procurou por ele. Rapidamente o encontrou e, no corredor, com colegas passando, falou que gostava que ele entendesse que gostava demais dele mas como amigo e que além disso respeitava demais a amiga e que ele tinha interpretado algo erradamente. Ele aceitou bem, ficaram amigos na mesma e vida que seguiu.

Mas estas coisas deixam mossa. Ana passou a apanhar carona com outros colegas para casa e mais tarde já trabalhava e já tinha carro.

Passados uns anos foi a um casamento de uma colega de faculdade. Quase tinha perdido o contato com todos. Levava uma vida com muitos trabalhos, com aulas de mestrado, com jogos ao final de semana, com tarefas familiares, etc. Não ia mais aos jantares e festas, onde todos contavam as suas vidas perfeitas, as viagens intercontinentais que faziam, os apartamentos e casas e carros que os pais lhes davam. A vida dela era outra. Nada vinha de graça. Chegou, amou ver todos de novo. Muitos casados, alguns já com filhos. De repente o seu amigo apareceu. Também tinha ido ao casamento, com a antiga namorada, agora mulher. Gostou de os ver e ele a tratou bem. No meio do casamento foram todos a um local alto para ver a paisagem. Era necessário subir uma escada estreita onde só passavam uns dois de cada vez. Talvez por uma estranha coincidência, foi o amigo que ficou para passar junto com ela. E, passado mais de quinze anos, percebeu que ele voltou para aquele lugar emocional do carro. Perguntou onde Ana estava a trabalhar, que sabia que ela estava só e terminou dizendo que naquele dia era uma boa ideia fazerem o que não puderam fazer no dia do carro. Terminou aquele monte de palavras e já estavam de novo junto de todos. Ana percebeu que alguns homens, antigos colegas seus, estavam atentos à situação e isso a assustou mais ainda. Ficou com uma sensação estranha de que o amigo “voltou à carga” e desta vez, com a ajuda dos amigos casados. Que belas prendas! Eram os olhares vaidosos das colegas que casaram com eles, eram os olhares deles olhando ela – a solteira do pedaço, era uma sensação horrível de que não devia ter ido. Lá esteve no casamento circulando, comendo, falando com muitas pessoas, mas sempre vigiando por cima do ombro tudo ao redor. Quando percebeu que era uma boa hora para ir embora sem causar mau estar nos noivos, se despediu silenciosamente de poucas pessoas e foi embora no seu carro. No caminho para o carro lá estavam elas – as estrelas. Silenciosas, parceiras.

Na viagem para casa percebeu que um carro a seguia e, em determinado momento em que o carro estava mais perto, percebeu que quem a seguia era o amigo. Gelou. Como assim? Como soube que ela tinha vindo embora? Quem o avisou? E que desculpa ele terá dado à mulher para sair do casamento? Acelerou o carro, ele acelerava o dele. Dirigia o carro bem devagar mas ele não ultrapassava. Confirmou que ela a seguia. Fez um percurso diferente para tentar chegar rápido e entrar no prédio antes dele chegar na rua. O coração já estava aos pulos. Chegou rápido, estacionou numa rua do lado da rua de casa, saiu do carro tentando dar passadas largas e rápidas sem dar a entender que estava fugindo e ele surgiu de uma rua lateral. A pé. Calmo. Ela tentou manter a calma e mostrou-se surpreendida por vê-lo. Ele disse que a veio acompanhar a casa e também para a avisar que um plástico se tinha colado na centralina do carro. Era verdade, estava um plástico colado na centralina que retiraram facilmente. Andou 30 km para isso... Ele ainda perguntou se podia entrar para tomar alguma coisa e conversar. Ela disse que estava muito cansada e que no dia seguinte tinha compromissos, ao mesmo tempo que ia caminhando na direção da porta do prédio. Ele acompanhando e insistindo que era só um copo. Até que de repente ele parou, se despediu e foi embora. Não faz ideia nenhuma de como aconteceu o milagre. Seguiu os últimos metros até à porta do prédio sentindo as estrelas, sua proteção. O mais rápido que pôde, colocou a chave, rodou, abriu a porta e fechou. Entrou no elevador, entrou em casa e finalmente conseguiu respirar.

Ana olha as estrelas no hemisfério sul e recorda essa tensão, esse medo, essa tristeza de perder um amigo assim, como uma estrela cadente. Ou decadente.

Ana Santos, professora, jornalista

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