Conto “BANDIDOS DO RIO CAUSAM ARREPIO”
Parecia inacreditável, mas o sol tinha nascido de novo – apesar da dor. Seu irmão foi vitimado pela violência, coisa que ela denuncia todos os dias e pelo qual é a ameaçada cotidianamente.
Olha seus colegas, em Brasília – um grande número deles vivem escondidos por trás de uma imunidade e carros oficiais que lhes garantem apenas o maior aparecimento na mídia - para alguns nem isso – sem produtividade, sem sequer um pensamento piedoso em relação ao povo. Ao seu povo. A partir daquele dia para ela mesma.
Sua família estava imersa na dor; dilacerada. A ideia de que que alguém pudesse ser morto por engano – de maneira simples, como virar à esquerda, ao invés da direita – era ultrajante: enquanto seu irmão desaparecia, senhores e excelências não faziam nada a não ser discutir quantas e quais armas poderiam ser liberadas para todos – pelo jeito, até para os bandidos. Aqueles bandidos, quem sabe?
Trinta e três tiros inúteis, nas pessoas erradas, mas era pior: Como alguém atravessa a rua de um hotel e, sem aviso, por engano, leva trinta e três tiros? Não seu irmão – qualquer pessoa. Algo tão definitivo quanto a morte, assim, como “desculpe, foi engano! Como uma mulher trans pode ser assassinada e a sociedade apenas olhar? Como as mulheres podem ser espancadas cotidianamente e aqueles senhores excelências de nada, de menos do que nada, de carniça, continuam falando indelicadezas e inutilidades sem nenhuma atitude coerente, de quem foi eleito para legislar, não para aparecer?
Que sentido tinha aquilo tudo? Como permitir que aquele estado – o Rio de Janeiro – se transformasse em sinônimo de máfia, bandidos, traficantes e milicianos, sem nunca ninguém se comprometer com um planejamento real contra a violência? Não porrada, tiro e caveirão – planejamento. E como isso foi sendo permitido por anos, décadas, ao ponto de agora estarmos todos nessa ratoeira?
Ela tinha escolhido correr esses riscos, mas seu irmão, não. Seu irmão tinha escolhido curar pessoas, consertar ossos. A ideia de um crime político a atormentava, mas morrer porque naquele dia “não deu sorte” era... ultrajante... era imperdoável.
Enquanto seu irmão morria, lá estava Brasília com o presidente do senado pensando em eleger seu amigo no ano que vem, o presidente da Câmara pensando em como se manter no poder, mesmo ao sair da presidência, os dois pensando em como pressionar o Supremo, que pensa em quem pode ajudar a eleger para a vaga remanescente, enquanto um dos indicados pode ir lá parar porque representa perigo real de ser eleito presidente do País, num futuro próximo por ter gabarito. Por trabalhar. Mas quem pensa em seu irmão morto, nas mulheres trans assassinadas, nas mulheres vitimadas, nos pobres, favelados, pretos, todos enlutados, nos agricultores, na mata destruída, nos agrotóxicos, nas pessoas?
Percebeu que talvez – talvez – tudo aquilo fosse um sinal e que ela e alguns poucos tivessem que enxugar as lágrimas e defender o povo como guerreiros – com unhas e dentes. E talvez – talvez – com líderes melhores, o povo conseguisse ver por entre lágrimas e perdas e tiros e indiferença de autoridades que tudo isso acontece todos os dias – mas não é justo. Não é justo com o coração de ninguém, com a família de ninguém.
E dentro de si sentiu as mãos de pessoas que a abraçaram, sentiu o calor dos braços e sentiu que muitos sentiam, sentiam muito... Isso lhe deu coragem de continuar...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Quem manda é o Cosmos”
Tinha acontecido muita coisa. Muitos impedimentos. Muita moralidade impedindo que a vida sucedesse. Ambas se entenderam bem logo que se conheceram, mas cada uma estava no seu mundo. Cada uma casada. Cada uma na sua vida, em vidas que não se encaixavam. Projetos de sucesso que circulavam em sentidos opostos. Além disso, bastou algumas pessoas evitarem responder a perguntas, silenciar curiosidades, negar divulgação de contatos para o afastamento ir acontecendo. E a vida foi se dando assim, com as duas afastadas, durante longos anos.
O universo toma umas decisões que ninguém consegue impedir. Ninguém. Não adianta impedir aquilo que precisa acontecer. E um dia, esse mesmo universo aproximou as duas, ambas separadas, magoadas, espezinhadas, excluídas. Mesmo mais velhas e mais sofridas, a energia da felicidade voltou de novo a comandar suas vidas. Muitas burocracias, muitas mudanças, muitos olhares espantados, mas tudo era de novo possível.
Estavam juntas há uma semana e se arranjaram para ir a um aniversário. Uma festa linda, numa casa com espaços originais e gostosos. Inclusive a ideia para a cozinha da casa veio desse dia e do que viram. Quando chegaram perceberam que também foi convidada uma pessoa problemática. Essa pessoa quando as viu juntas, tranquilamente felizes, ficou pálida e com um olhar estranho. Não entenderam mas não esqueceram.
No dia seguinte foram a um museu com o sobrinho de uma delas. O acordo era irem ao museu e depois lanchar num espaço lindo da cidade. Tudo combinado, tudo bem, tudo tranquilo. A exposição que visitaram sobre brinquedos era linda. O menino, vinha de mão dada com a tia, saindo do museu, entusiasmado com o que viu e mais entusiasmado ainda com o que ia comer. A descida das escadas do museu de mão dada, conversando e olhando um para o outro, impediu-os de ver um enorme buraco no final da escada. A tia enfiou o pé exatamente ali, caiu, o menino caiu junto. Quando se tentaram levantar, algo não estava bem. A tia tinha fraturado a perna, o menino ficou em pânico, a outra mulher perdida porque tinha acabado de chegar na cidade há 8 dias e não sabia como ajudar. A mulher que se feriu precisou ter o controle da situação, precisou acalmar os dois, dar indicações de qual hospital seria o mais adequado, emprestar o carro. Foi necessário chamar a mãe do menino, pedir para ela e o filho passarem apenas aquela noite na casa delas para a cachorra poder comer e para avisar a empregada.
Uma noite no hospital, com dores horríveis, aguardando a hora da cirurgia – a que se feriu. A outra caminhando a pé por uma cidade desconhecida para ir buscar os medicamentos, dormindo do lado, avisando uma família que mal conhecia. Era um sábado. No domingo cirurgia pela manhã, saída do hospital pela tarde. Chegada a casa no início da noite, com a casa vazia, sem luz, devido a um problema na rua. Sem luz para ver o que faziam, sem luz para manter os alimentos saudáveis, numa cidade extremamente quente. Conseguiram mais ou menos comer, tomar banho, dormir. Na segunda-feira, de muletas, teve de ir trabalhar. Foram juntas. Nessa tarde, no trabalho, recebeu um telefonema dizendo que estava demitida e que tinha 5 minutos para se despedir dos seus funcionários e sair. Um lugar que ela construiu do zero. Funcionários que eram tratados como filhos por ela. 5 minutos de abraços, 5 minutos incompreensíveis. Funcionários que nunca mais quiseram saber se ela ficou bem, se precisava de ajuda.
Se reergueu aos trancos e barrancos. Lentamente. A outra também teve seus problemas. Quanto maior seu currículo menos trabalho encontrava. Chegava a ser engraçado a forma como as oportunidades fugiam da sua mão.
Aprenderam a viver com muito menos. Isso as uniu. As fortaleceu.
Conseguiram, dali a uns anos, um trabalho onde eram muito competentes, mas algumas pessoas tentaram roubar seu patrimônio profissional. Não aceitaram. Foram demitidas, ameaçadas, apontadas pelas altas autoridades como pessoas que atraiçoaram o local onde trabalhavam. Mais uma vez as pessoas com quem trabalhavam e que foram elas que as contrataram, lhes viraram as costas. Acharam que se iam dar bem, mesmo sem elas.
Ouviram um dia um homem dizer que aquela mulher da festa, os caras que as demitiram, as pessoas que escondiam informações e contatos uma da outra, desejaram muito o seu mal. Realmente retiraram-lhes muito, muitas oportunidades, muito conforto, alguma saúde até, mas só isso. Ao desejar tirar, deram de outra forma. Ao não aguentar ver a sua felicidade e desejar acabar com ela, provocaram uma maior união entre as duas. Ao tentar separar, uniram. Ao tentar tirar, deram. Ao entrar na casa delas lê-se esta frase de Adélia Prado: "A vida é muito bonita, basta um beijo e a delicada engrenagem movimenta-se, uma necessidade cósmica nos protege." Faz sentido. No caso delas nem foi preciso um beijo para tudo começar a engrenar.
Ana Santos, professora, jornalista
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