2 Contos: “SANTA COVARDIA” e “Quem sabe?”
- portalbuglatino
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Conto “SANTA COVARDIA”
Ia para os lugares e, se alguém ousava reclamar da sua grossura e indelicadeza inomináveis, logo soltava:
- Em nome da liberdade de expressão, tenho o direito de falar o que quiser! Internet livre da censura! Fora os juízes e os conselheiros! Fora os pais preocupados! Fora o pecado! Fora com a informação! As pessoas podem falar o que quiserem livremente! Se é mentira ou verdade, o problema é delas!
Foi chamado a depor na delegacia, depois que a vizinhança – de saco cheio de ser ofendida – deu queixa dele. A delegada – consciente de sua autoridade, graças a Deus – começou a ouvir indiretas no minuto em que entrou na sala para tomar o depoimento “do Mala”.
- O que você está fazendo aqui? Pensei que fosse falar com o responsável e vejo uma garota?
- Tem alguma coisa contra as mulheres? É incel (celibatário involuntário)? Faz parte da “manosfera”?
- Dobre a língua ao falar comigo porque eu conheço vários deputados “conservadores” que vão dar cabo da sua reputação nas redes sociais!
A delegada chama a tenção do escrivão:
- Ta registrando tudo o que o senhor diz? Porque pelas alegações, logo de entrada, suspeito que a queixa pode ter fundamento...
- Muito nervosinha, a moça! Por que toda a mulher é descontrolada?
A delegada nem piscou, de tão calma.
- Pode enquadrar por desacato, por favor. O senhor vai ser detido, mas sai sob fiança. Se a pagar, claro...
- Quem você pensa que é?
- A autoridade policial que o senhor está desacatando. Pode levar!
Quando viu dois policiais se aproximando com as algemas na mão, por algum motivo inexplicável – covardia, talvez – a gentileza lhe voltou. Foi como se um “santo lhe descesse” – um minuto atrás a personalidade principal era de leão; de repente, saiu o leão e entrou a ovelhinha, o ratinho medroso, o camundongo trêmulo.
- E-e-eu estou falando dessas coisas, mas a senhora sabe que é tudo “retórica”, eu não faço nada, não! Sou uma pessoa assim, meio explosiva, mas veja: tenho sempre as melhores intenções. Com a senhora mesmo, quero apenas me relacionar, quero sua amizade. Se eu me candidatar a representante dos moradores da minha rua, a senhora fecha uma parceria comigo?
A delegada olhava firmemente nos olhos dele, desvendando-lhe a farsa, as mentiras, a forma ultrajante como incomodava os que não conseguia enganar, a facilidade com que abandonava os iludidos que acreditavam nele.
- Eu declino, obrigada. Pode levar pro xadrez!
E assim o leão que entrou, já chorando, saiu cabisbaixo, com “o para-choque murcho”- diretinho para o xadrez.
A delegada, recostada na cadeira, ouvindo o choro, teve os olhos iluminados pelo sorriso que não lhe saiu pelos lábios.
- Declino é ótimo!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Quem sabe?”
Jacinta termina de tomar banho, coloca um vestido de verão de cor rosada, penteia o cabelo e coloca os chinelos de praia. Está pronta para ir ao cemitério trocar as flores das campas dos familiares, como costuma fazer todos os sábados pela tarde. Está a prever demorar a tarde inteira porque gosta de fazer tudo com calma. Comprou as flores na quinta-feira, na Feira de Barcelos, na banca da Dona Primavera.
Já organizou tudo: flores, cântaro de água, vassoura, cloro, sabão de barra, tesoura.
- Teófilo? Vou sair para o cemitério agora. Devo voltar por volta das 19h, a tempo de aquecer a nossa sopa para o jantar. Até logo.
- Tá certo. Eu estarei por aqui pelo quintal podando os Kiwis. Devo demorar mais ou menos o mesmo tempo que você. Até logo.
Lá vai Jacinta, descendo a rua para a subir de novo e chegar ao lugar onde está a sua família toda – com a excepção do Teófilo seu companheiro de vida. Pousa toda a tralha que levou, vai encher o cântaro da água e começa a limpeza. Nunca imaginou chegar a um momento da sua vida em que toda a sua família estaria naquele lugar e ela viva. Era lógico, espectável, mas ela nunca tinha pensado nisso e quando se deu conta já os seus dias eram assim, ela e Teófilo na casa, na mesa, nos aniversários, nos domingos, no Natal, na Páscoa, nas Festas Juninas.
Só quando chega é que se lembra de novo que deseja trocar algumas fotografias – acha que aquelas já estão velhas e deseja colocar umas em que eles estão mais sorridentes. É assim que os quer recordar. E acha que é uma forma de pensar que eles estão sorrindo, lá por onde andam.
Tem muita dificuldade em imaginar que não foram para lado nenhum, que acabaram, que seu caminho terminou. Sabe que o corpo deles, como uma máquina, avariou ou degradou, mas tem esperança que algo deles esteja em algum lugar – e que esteja bem. Não fala disto com ninguém com medo que a chamem de maluca e com medo de arranjar problemas no trabalho e com os vizinhos. É tudo gente muito diferente dela, muito desconfiados, muito conservadores e nunca iriam achar normal essa sensação que ela tem. Na verdade, sensações diárias que tem, em quase tudo o que faz.
Teófilo sabe o que ela sente, compreende e acha mais normal do que ela. Ele sabe que apesar de tudo, os sábados de tarde são momentos da semana bons para ela porque de cada vez que ela sai e volta é como se tivesse estado num daqueles almoços em que todos sorriam, brincavam, se amavam. Ela o ama, também por isso, por essa compreensão. Realmente os sábados de tarde são estranhamente animadores, mas ela todos os dias os sente, a todos, cada um à sua maneira.
Quando acorda tem a sensação que é a avó que a vem chamar todos os dias e lhe oferece um batido de leite com banana e chocolate em pó, como o fez num dia em que ela estava muito triste. Sempre que chora parece sentir uma aragem leve na sua face, como fazia sua tia Papoila quando a ia ver estudando – aparecia atrás da sua cadeira, não dizia nada mas soprava no seu cangote e tinha sempre um enorme sorriso quando ela se voltava para a olhar. Quando tem de fazer alguma coisa que a assusta, parece ouvir um sussurro de sua mãe dizendo “confia, o universo precisa que estejas bem para tudo acontecer pelo melhor”. Quando demora a resolver problemas e começa a ficar inquieta e com medo de não ter solução para aquilo, aparece na sua imaginação o primo Pipoca dizendo: “resolve primeiro o mais urgente e depois o mais importante e tudo se resolverá. E lembra que desistir de tentar nunca é opção na vida de ninguém.” Sempre que sai para o trabalho verifica se está com a roupa bem porque seu avô sempre lhe dizia que apesar da roupa estar lavada e passada, pode acontecer de se encostar em algum lugar, de ter uma mancha do sabão da máquina, de ter ficado alguma mancha, e chegar ao trabalho de banho tomado, com a roupa limpa, e disponível para dar o seu máximo, é o mínimo para um qualquer trabalhador e meio caminho para o sucesso. Pensa em todos os outros e outras, queridos e queridas, e em como estão todos presentes na sua vida. Tão presentes que acha que continuaram suas vidas sem aquele corpo que tinham. Quem sabe eles são o vento que ela adora sentir, eles são o calor que sente quando o sol bate na sua pele, são a sensação do corpo molhado quando mergulha no mar, o gosto da castanha de caju com ameixa na sua boca, a cama feita, o cheiro de comida, a sensação de que está sempre na presença de alguém que a acompanha diariamente, o toque de uma das suas mãos na outra. Quem sabe?
Terminou. Está de volta para casa. Teófilo, com o banho tomado, roupa lavada e ar de feliz, veio ao seu encontro. Fizeram o resto do caminho para casa em silêncio, de mão dada. Quando chegaram e ela colocou a chave na porta para entrar, Teófilo pergunta:
- E como estavam todos?
- Bem. Estavam bem.
Ana Santos, professora, jornalista
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