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2 Contos: “ESTADOS UNIDOS QUE NOS SEPARAM, AMÉM” e “Sonhos e pesadelos”


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Sítio Burle Marx

Conto “ESTADOS UNIDOS QUE NOS SEPARAM, AMÉM”

Afeganistão é aquele lugar que o nosso dia a dia não comporta porque ninguém quer imaginar a treva. Os homens monstruosos, com um nível de crueldade que lembra o atraso, o preconceito, a falta de escrúpulo e... e nós, as mulheres, sempre em posição de desvantagem, já estupradas ou imaginando a que horas o estupro vai nos acontecer.

A regra sempre que muda, é pra pior. Agora, uma mulher já não pode ouvir a voz da outra, que dirá falar com a outra, que dirá interagir, imaginar um plano que mate todos esses vermes...

Mãos pra trás, amarradas. Olhos aterrorizados, que tentam (em vão) achar uma saída, uma forma de escapar.

Engraçado que os americanos - sempre tão livres e democráticos - nos entregaram de novo sem pestanejar. Seriam homens melhores e mais livres que essa carniça humana viva ao nosso redor? Engraçado, porque nem parecem nos ver. Seria alguma espécie de feitiço só sermos vistas e percebidas pelos homens-carniça afegãos?

Olhava minhas roupas e ali estava o sangue, presente e doloroso - onde a mulher tivesse buracos no corpo, podia-se procurar por sangue. Era uma espécie de dor humilhante que tinha que ser imposta a todas nós, afegãs ou não, ocidentais ou não. Mulheres. Apenas o fato de que os homens, para nos sentirem submetidas, tinham que penetrar-nos com violência por todos os buracos que tivéssemos, amarradas e penduradas como morcegos aterrorizados. Alguns diziam que esse ultraje acontecia por causa da escravização, mas não - é um advento nojento que acontece com animais de forma humana que ousam chamar-se de homem e a forma como são vistas as relações de poder interpessoais entre o gênero masculino e feminino.

Uma de nós está com o pé quebrado e ninguém a pode ajudar a andar. Quando ela cai de novo, aquele bando de animais masculinos cai por cima dela, a arrastam pela rua, a jogam dentro do carro e... de lá ela nem sai mais...

Os homens americanos, os tais soldados libertários, nem pensaram duas vezes em levantar e ir embora. Os outros homens do mundo - haveria outros homens no mundo menos asquerosos do que esses? - nunca levantaram a voz para tentarem qualquer coisa. Talvez se nos matassem a todos de fome, fosse menos humilhante e doloroso... Mas... a humanidade quando pensa, pensa em termos femininos?

Eles pensam que rezo, mas ao contrário, eu os entrego ao inferno, à perdição espiritual total e absoluta, à treva, ao fogo eterno... E o que dizer dos americanos? Eles nos deram a luz, nos fizeram provar da luz, da liberdade para agora... tantos homens civilizados... existe civilização na omissão generalizada dos povos? Mais uma foi cercada... Quando a morte cheira a paz, meu corpo, que empurro contra as paredes, muros, cercas, na tentativa de que não me vejam, como os americanos não viram e como todos os homens do mundo não veem... alguma coisa socialmente não vai nada bem, está podre, parece perdida em todos os bens de caráter que tivemos. Tivemos?

- Que Deus cape a todos.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Sonhos e pesadelos”

Sou feliz. Por vezes muito feliz. Mas quando aparecem estes sonhos, ou talvez pesadelos, não me sinto assim tão feliz.

Sou feliz quando ouço a voz de minha mãe chamando por mim para jantar, todos os sábados de tardinha, pelo fresco e mágico anoitecer. O barulho daquela janela se abrindo, e com ela se abrindo também meu coração. Depois sua voz me buscando, sonoramente pelo meio das árvores repletas de frutos. Eu respondendo, curta e “contente que só”, e o chiar da janela que se fechava de novo. E vem o pesadelo me colocando no meio da chuva, do vento, dos carros amontoados, do frio, do medo.

Sou feliz quando treino todas as quartas-feiras. Mais curto, mais intenso, mais cheio de exercícios cativantes. Mesmo tão exausta, tão dolorida, tudo esqueço mergulhada naquela alegria, naquela ocupação mágica da vida. Depois a caminhada para casa, a pé, com o fresco da noite me acompanhando. Menos pessoas na rua e isso me agrada igualmente. E é o banho, o vestir a roupa lavada e cheirosa, o jantar que meu estômago abraça, o corpo relaxando e a luta contra o sono, gostosa de perder. E lá vem de novo o pesadelo: pessoas de um lado, pessoas do outro. No meio uma vala. De um lado as pessoas procuram no chão restos de comida, brigando com os ratos. Do outro lado, as pessoas escolhem pequenos bocados de lagosta, de vários tipos  de peixe, vários tipos de carne. Comem pouco para manter a “linha”, mas mexem e remexem desperdiçando muito alimento. Na vala, crianças nuas, sujas, subalimentadas, rogando por um pedaço de comida, com ambos os braços dirigidos para as pessoas, com as mãos abertas. Acordo sempre que vejo que no meio daquelas crianças todas olhando na direção da comida desperdiçada, eu sou a única criança que olho para as pessoas que nada têm para comer.

Sou feliz com os homens. Gentis, charmosos, honestos, sinceros. Como fazemos coisas boas juntos. Como é boa a vida com eles. Parceiros, cavalheiros, protetores, respeitadores. Aprendo com eles, respeito-os, aprendem comigo, respeitam-me. Parceiros na dor, na necessidade, nas dificuldades. E lá vem o pesadelo. Me ganham a confiança e me atraiçoam sorrindo. Gentis, sorridentes, mas por debaixo do “pano” das relações profissionais, de poder, de hierarquia, de oportunidade na vida, me espetam facas longas e profundas. Eu tento fugir, mas ao fugir de uns, vou de encontro a outros – iguais ou piores. Está escuro, só consigo ver suas caras com sorrisos de quem domina a situação, de quem está prevendo o que me vão fazer. Eu vou ficando cada vez mais assustada, mais sem saída, mais horrorizada, mais perdida. De repente, todos estão me cercando, me oprimindo, aguardando o momento em que desisto de tentar fugir e que me rendo, baixando “a guarda” e disponível para os horrores que desejam. E é quando eles se vão aproximando, mais e mais e que o primeiro me toca, que acordo.

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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