Conto “O ANO LAVA”
Ela olhou as notícias na internet e percebeu que o mundo, as pessoas, as coisas, bailavam diante de nós, descontroladas. Frios descomunais, quedas inacreditáveis de temperatura pareciam incompatíveis com o calor da Bahia e mais ainda – nem parecia que altos tão altos e baixos tão baixos fizessem parte do mesmo mundo. No entanto, lá estavam eles...
Havia pessoas tão ruins, que nem pessoas propriamente elas pareciam. O universo e sua incrível capacidade de recomeçar lá estava, como sempre. Será que aquilo tudo poderia ser a transição planetária tão falada?
- Há almas que precisam procurar outras esferas porque aqui, elas atrapalham a evolução dos outros...
Putin poderia ser uma dessas almas em tráfego. Mas aqui no Brasil mesmo, ela poderia sentir inúmeras presenças incompatíveis. Como sentir a leveza necessária para ascender com tanta energia pesada?
Lá no fundo de si, ouviu algo como:
- O ano leva, o ano lava. Tudo aqui pode vir a ser renovação, mas se precisa começar algo. Comece.
Frenesi.
O que ela deveria começar? Novo trabalho, novas pessoas. Se sentia tão só e, ao mesmo tempo, não sabia a quem procurar porque as pessoas tinham se tornado ilhas.
- O ano leva, o ano lava. Lave seu espírito com bons desejos para todos. Ascenda.
O cara que ela não gostava, o primo que a tinha traído, mentiras com novos nomes, mas que queriam dizer apenas mentiras. Ela poderia perdoar, mas não queria mais se envolver com aquele tipo de pessoa.
- Universo, como pode ser mais leve, mais engraçado, criativo, rico, farto, pleno?
De pergunta em pergunta, seu coração a levou pouco a pouco às buscas onde o mundo era presenteado pelo amor. E o meio ambiente, as pessoas, os coletivos, princípios, alegria, cordialidade, entrega, simplesmente apareceram diante dela, assim como a esperança. E a esperança dá a cor do mundo. Um mundo sem esperança é apenas seco e estéril. Se ver como parte da esperança do mundo bastou-lhe. Cada trabalho era a fartura da esperança, da ação em nome dela e da construção permanente da vida.
- Feliz vida para todos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O Sonho”
Tinha uma Rena na sua frente. Nunca tinha visto uma tão perto muito menos uma Rena do Pai Natal. Era enorme, estava triste, ansiosa e ferida. Dizia que estava perdida e que precisava encontrar com urgência por onde andava o Pai Natal. A noite de 24 de dezembro estava a chegar e ela tinha de o encontrar porque ele precisava de pelo menos duas Renas para o Trenó ter a velocidade desejável para conseguir voar, com o peso de tantas prendas. Perguntou se os tinha visto mas percebeu que ela estava rindo e zoando. Como assim existir Rena que voa, Trenó que voa e Pai Natal? Que coisa de criança, tão infantil. E uma Rena falando? Que coisa louca... A Rena ficou furiosa e decidiu seguir em busca noutros lugares. Estava com pressa e não tinha paciência para pessoas sem sensibilidade, sem capacidade de sonhar. Ana chamou-a, pediu desculpa pelo exagero e, com todo o cuidado, disse à Rena que ela não estava perdida. A verdade era que já não existia Pai Natal, já não existiam Renas, nem Trenós. A vida agora era a sério. Vida a brincar tinha terminado. Existiam guerras de novo, pessoas fazendo coisas horríveis, gente inundada de maldade, gente mentindo muito, demasiado, de formas inacreditáveis. Não existiam famílias felizes, com dinheiro suficiente para comer, com prendas. Metade do mundo estava fugindo do lugar onde nasceu para lugares que achava que seriam melhores mas depois não eram aceites ou eram mortos ou eram escravizados. O planeta estava tirando as casas à outra metade do mundo com tempestades, inundações, calor, sismos. Não existiam mulheres livres, felizes. Não existiam populações LGBTQIA+ porque ou tinham sido assassinadas ou as pessoas voltaram a esconder o que eram. As pessoas negras continuavam a ser tratadas como inferiores, sem regalias, sem oportunidades. O mundo estava em ponto de rotura, explosão, implosão, destruição a todo o momento e a bondade estava desaparecendo, engolida pelos sete pecados mortais.
Foi aí que a Rena lhe pediu para parar de falar e lhe disse que quem estava enganada era a Ana, que sempre existirão Renas, Trenós e Pai Natal, sempre, aconteça o que acontecer com as pessoas porque essa é uma das poucas alegrias, esperanças e fantasias doces, suaves e puras da vida e do mundo e nos impede de envenenar por completo contra tanta desgraça, tanta injustiça. Antes de se despedir lhe disse para nunca deixar de sonhar, de pensar nela, no Trenó e no Pai Natal. Sem isso ficaria sem Natal, sem vontade de futuro e poderia passar a ser mais uma das pessoas doentes e más do mundo. Ana ficou a pensar naquilo enquanto pela primeira vez via uma Rena voando. De repente, um barulho diferente, duro, feio. Ana acordou e aos pouco foi percebendo o som de tiros e gritos que vinham da cozinha de casa...
Ana Santos, professora, jornalista
Nota:
Pai Natal / Papai Noel
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