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2 Contos de Luz e Sangue


Fotografia de Lisa Kristine - @lisakristinephotography

Conto “ENTRE ODIO E SANGUE, LUZ...”

Saiu a se arrastar pelo pó da rua, se esgueirando pelas esquinas. Sem luz, sem água e sem esperança de salvação naquele dia.

Tiros.

Bombas.

Lágrimas.

Bestialidade. Ela tinha visto no YouTube padre Reginaldo Manzotti afirmar que “tudo o que não pertencia a Deus, tinha dono”. Ela viu o que o mal fazia ali, as mortes terríveis, o sofrimento atroz e viu séculos de ódio passando como se fossem nuvens negras de emoções mal reprimidas – como algo podre e fétido que produzimos sem saber e que muitas vezes transborda e nos infecta por retaguardas inimagináveis.

Choros.

Gritos.

Dor.

Estupidez humana. Tantos anos de ditaduras e sistemas de força impediram as pessoas de fazerem o que se ensina às crianças:

- Vá conversar com seu amigo e se entenda com ele.

Seria mais simples, se pudesse ser assim.

O Brasil tinha sido abençoado com a presença de todos os povos, que conviviam, comiam e riam; se xingavam e trabalhavam, casavam e divorciavam – mas dividindo os enormes espaços de seu território. Mas ali... tudo tão pequeno e eles insistindo em apequenar mais ainda... em amesquinhar.

Gotas de sangue, tiros, explosões.

Luz... Curioso que daquela fumaceira, do sangue que sabia estar por cima de seu corpo, não havia mais dor, mas um êxtase feito de luz e que parecia exercer um efeito de remédio, de cataplasma... e luz. Muita luz. Viu o Brasil limpo de suas porcarias, aqueles deputados incompetentes derrubados por raios divinos, castigados por seus crimes. Tudo era leve naquele Brasil sem bandidos. Havia uma rede ao redor do País, onde, uma luz amarela se acendia quando se pensava em passar a perna em alguém e onde a inciativa da mentira tinha como consequência ser catapultado para trás. Foi um tal de chefe virar faxineiro e faxineiro virar chefe... e grande sabedoria se obteve na troca porque os sábios que foram ultrajados lá estavam, de volta ao brilho habitual.

- Brasil, que aula você está dando! O maior investimento foi o de apenas apartar os maus dos bons!

Piscou e por todo lado havia gemidos e pó. Não conseguia se mexer e seus olhos se moviam com uma quase placidez. Não sentia o corpo, portanto não sentia dor nenhuma. Lá no final daquela desgraça inominável, de ódios seculares sem coragem de sentar e resolver questões práticas, lá naquele fundo, ela apertou os olhos e lá, lá distante, de novo, ela viu, tinha certeza:

Luz.

Era o seu maior desejo para todos.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Cuida de ti”

Ana está no fim da vida. “Já atravessou muito chão”. Já passou muitas “Primaveras”. Já chorou muito, riu muito, doenças, dificuldades. Tem fortes marcas da vida. Quando você olha para ela vê aquelas lindas rugas na cara, aquele olhar que não se surpreende com mais nada. As mãos lentas e com os ossinhos desencontrados. O levantar demorado. O passo arrastado. As recordações engolindo seu sono, durante a noite. A mesinha de cabeceira cheia de frascos de comprimidos e de pomadas.

A lentidão e intensidade com que saboreia cada alimento que coloca na boca.

Fez 90 anos estes dias. Adora ler mas os olhos já nem com os óculos conseguem estar atentos às letras, às palavras, às histórias contadas pelos outros. O esforço é agora todo para olhar a sua vida e tentar não cair, nem deixar cair nada, conseguir cozinhar e arrumar a sua casa, deixando-a segura para os seus pés pouco seguros.

O pai um dia falou-lhe que na cidade grande existia um lugar onde o seu avô ia sempre que o visitava. Nunca foi, nunca deu para ir. Foi muitas vezes a essa cidade em trabalho, em divertimento, em férias, mas nunca arranjou tempo para lá ir. Agora, com 90 anos, tem pena de não ter ido. Essa talvez seja a única coisa que tem pena de não ter feito. Sente-se serena. Nem muito triste nem contente com a vida que teve. Aceita tudo. Há uns anos atrás sofria muito pensando que ia deixar a família, os filhos, o marido, os netos e sofria também por pensar que eles iam precisar dela. E, o sofrimento mais forte, era achar que dependia dela a família ser um conjunto de pessoas boas. Até que um dia conheceu uma senhora da sua idade, nas idas à fisioterapia, ficou amiga e contou-lhe as suas preocupações. A amiga, sentou-se do seu lado, agarrou suas mãos, olhou seus olhos e disse:

- Ana, não faça isso. Não aceite esse jogo injusto e incorreto da vida. Faça o melhor que pode, com o que tem, por si. Apenas por si. Isso será suficiente.

As pessoas vão desiludi-la muito se pensar dessa forma. Olhe todos como pessoas sozinhas, vivendo e trilhando seu caminho. Não interessa a idade, o nível social, o gênero. Deseje-lhes luz. É só isso que pode fazer por eles.

Ana não esqueceu mais isso e a partir desse dia assim fez. E se sente serena. E precisamente nesse instante que ela se sente serena, um homem entra na sua casa, a assassina com facadas na varanda, onde ela apanhava sol. Em seguida, esse mesmo homem filma Ana no chão, morta, em pedaços, e coloca o vídeo nas redes sociais.

Ana Santos, professora, jornalista


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