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2 Contos: “AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS!” e “O mundo real”

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Conto “AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS!”

              Sempre me senti atraída pelas previsões, no final do ano, pelas cartas, signos, adivinhações. Uma vez – eu era ainda bem jovem, no Rio - nem tinha descoberto o budismo ainda – e um amigo meu previu que eu teria um grande problema ao redor dos quarenta anos, fato que uma astróloga também repetiu, quinze anos depois.

              - O ano de 2026 é 10 e, na soma dos dois algarismos, é 1. O fim de um ciclo, a semeadura de outro. O que você quer ser no próximo ciclo? O que vai semear? Porque você vai colher nos próximos 9 anos tudo o que plantar em 2026.

Tem força isso. As pessoas querem enriquecer, querem cargos, casas, carros – de preferência SUVs (ainda me pergunto o motivo de que, em Salvador, uma cidade de ruas tão estreitas, as pessoas insistam em ter carros enormes assim). Mas quando a metáfora vem: “O que você quer plantar?” – não vejo ninguém dizendo: quero plantar moedas, egoísmo, inveja, fofoca, desvio de dinheiro, mesquinhez, avareza. Semear é uma palavra relacionada só a coisas boas, a cuidado, paciência.

Isso me fez pensar mais profundamente no que quero ser. O que quero semear para melhorar enquanto ser? Já pensaram nisso? O que cada um que lê esse conto, gostaria de melhorar em si mesmo no ano de 2026? Será que, pensando assim, alguém pensaria em consumir loucamente Whey Protein para “shapear um novo corpo”? Isso é outra coisa que não consigo imaginar ninguém planejando, quando o termo semear, futuro, planeta, felicidade, fazem parte de uma previsão. E ainda mais outra pergunta me ocorre: “O que quer construir para o mundo”? Quais seus objetivos? Eu também não consigo pensar em “enriquecer”, “tomar o lugar do fulano no trabalho” porque é tão pequeno e mesquinho pensar apenas em si mesmo o tempo inteiro... Claro que eu quero poder trocar de carro, mas... entre trocar de carro e algo de bom que se possa fazer pelo mundo... não consigo escolher o carro...

Hoje o meu amigo carteiro disse que sem ter religião alguma, tenta ser um homem bom, todos os dias – o que inclui até tentar não se estressar no trânsito, andando de moto – e olha que carteiro roda...

Ser melhor todos os dias. Você tenta isso? Eu tento. Por isso o Bug Latino, todos os dias, com chuva ou sol, tem um tema diferente, uma arte, uma foto, filme, quadro, música, poesia. Tem uma dica pra quem não consegue se comunicar com facilidade. Tem a outra Ana – um presente a ser dividido a cada bom dia, a cada paradinha pra brincar com o cachorro de alguém, ensinar algo, brincar com uma criança. Viver um bom segundo seguido de outro e de outro enquanto caminhamos, bem cedo.

Como e o quê vai semear em 2026? Talvez conversar, parada na calçada, enquanto cumprimenta as pessoas que passam? Ver o menino tocando a sua campainha – sem saber que ela nem funciona – e rir, apertando-lhe o nariz, como se fosse a tal “campainha imaginária”? Ser uma pessoa de verdade, daquelas que ouvem e falam e saber que a sua contribuição pode salvar toda essa geração mais jovem que nem sabe mais levantar os olhos das telas?

O que vai semear? Lembre que as cartas não mentem!

Em tempo: com 40 anos tive uma câimbra. No coração. Viu? Isso muda uma vida!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “O mundo real”

Estudei uma vida inteira para ser uma Chef de Cozinha. E consegui. Construí carreira, uma linha de comidas diferenciada, um nome.

Depois de 20 anos mudei para um país muito diferente. Mudei por razões pessoais, mas aproveitei para poder evoluir profissionalmente noutro país. A ideia de poder mostrar meus pratos do lado dos pratos famosos do local, parecia fascinante.

Não foi fácil encontrar um restaurante para trabalhar. Mais difícil ainda, foi encontrar um restaurante para comprar. Bons assistentes, pior ainda. Uns desconfiados, outros não toleravam ordens de alguém “de fora”, outros pediam valores muito elevados.

Aos trancos e barrancos lá fui, abrindo meu restaurante e tentando construir uma “bolsa consistente e estável” de clientes. Fui percebendo que era preciso oferecer uns almoços gratuitos, ou o vinho, ou o espumante, ou “não ouvir” as conversas de negócios, de vez em quando. As faturas também repetidamente tinham de ser passadas com valores muito superiores à despesa real do almoço ou do jantar. Comprar alimentos também implicava favores, esquemas, que tive de aceitar. Lentamente fui-me sentindo aprisionada numa sociedade que me dava se eu desse, me favorecia se eu me corrompesse, me incluía se eu também vestisse a mesma pele.

Fora do meu restaurante dormia diariamente um morador de rua que chamavam de “Jamaicano”. Quando a gente se cruzava, ele me olhava com aqueles olhos secos de sede e fome e aquela imagem me visitava nos sonhos e pesadelos. Quando tinha dúvidas e vergonha do que fazia, neste novo lugar, lembrava dele e pensava que era melhor mesmo continuar este caminho corrompido do que ser mais um “jamaicano”.

Aos poucos fui-me habituando, ia doendo menos a cada ano, parecia normal e comum. Comecei a gostar.

Casei com outro chef de cozinha e isso aumentou muito a clientela. Gostava dele, mas gostei mais do que iria obter por casar com ele – Luki era muito famoso na cidade e isso iria dar-me mais segurança. Passei para outro nível. Melhorei. A vida era boa, e ficava melhor de cada vez que me habituava mais um pouco a essas curvas da vida. Comecei a apreciar. De vez em quando, fazer uns favores variados me dava mais um dinheiro extra. Pontualmente, era convidada para fazer comida para banquetes de pessoas muito ricas, muito influentes e muito poderosas. Uns políticos, outros empresários, outros vendedores de armas e de medicamentos com nomes estranhos. Isso aumentou muito mais minha conta bancária, meus bens.

Um dia, um cara de quem era muito amiga desde menina, também atravessou o oceano e veio viver para a mesma cidade. Fiquei preocupada. Eu não queria que ele soubesse o que eu fazia na sombra das minhas funções de Chef. Conversando com meu marido, chegamos à conclusão que era melhor não conviver com ele, fazer de conta que não sabíamos que estava vivendo no mesmo lugar, inventar desculpas para o manter afastado. Quando não fosse possível evitar, seríamos muito gentis, mas não o convidaríamos para nossa casa, não tiraríamos fotos com ele, nem o iríamos incluir no grupo de amigos de convívio. Proibido criar vínculos para o manter fora de quem eu era agora.

Mas a vida resolveu "baralhar" minhas contas. Ontem, quando saí do apartamento e entrei no elevador, ele estava no elevador. Me cumprimentou muito feliz por saber que estava vivendo no mesmo prédio que o meu.

Desde esse momento que me pergunto como ele consegue dinheiro para viver aqui? Isto aqui não é para qualquer bolso. Na verdade, só os bolsos corrompidos como o meu o conseguem. Será que somos iguais? Não resistiu, como eu, às ofertas fáceis e ao medo de virar um “jamaicano”?

Iguais, até aceito, mas melhor do que eu, não. Tenho de averiguar melhor isto. A esperta aqui sou eu...

Ana Santos, professora, jornalista


Imagem: Arnaldo Pomodoro


Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.


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