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2 Contos: “ADEUS ANO VELHO, MAS TUDO ME PARECE VELHO NO ANO NOVO” e“Eu? Errado?”

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Conto “ADEUS ANO VELHO, MAS TUDO ME PARECE VELHO NO ANO NOVO”

                  Fizemos um pequeno filme falando com as pessoas sobre os nossos desejos para o Ano Novo e recebi inúmeras mensagens maravilhosas, daquelas que poderiam talvez ensinar ao mundo a boa vontade, a dedicação e preocupação com os que estão vivos. Algo como dar esperanças, apontar metas mas, na maior parte do tempo, vi que elas repetiam palavras, apenas. Palavras repetidas que não se comprometem com ações, não são nada além de ruídos – mas elas não percebem isso, ainda. No Ano Novo no mundo, quem, sinceramente, desejou o bem, sendo capaz de fazer alguma coisa, contribuir de alguma forma?

                  Vemos os velhos ficarem mais velhos e mais sozinhos, pessoas que que querem comprar coisas e tamponar sua solidão com elas e são tantos carros, lanchas, tênis, que a história do sapatinho na árvore de Natal ficou pra trás, perdida no tempo. Há muito tempo tentamos viver de uma maneira mais simples, dando o que podemos fazer de imediato. Nada de vamos ajudar no futuro – ou podemos dedicar um momento ou não podemos, não queremos.

                  Subindo e descendo as ladeiras de Salvador, recebemos abraços verdadeiros de pessoas maravilhosas que perceberam que cada bom dia, cada sorriso, cada parada na caminhada foi verdadeira como um pequeno presente. “Como lágrimas misturadas à chuva”, como o androide fala para o Blade Runner antes de descarregar e morrer. Estamos chegando ao tempo onde o novo vai ser a educação da Inteligência Artificial, diante da falta de modos humanos. Mas se fomos capazes de ensinar e educar os robôs, por que não pudemos fazê-lo nas crianças?

                  Assim, subindo e descendo ladeiras todos os dias, vejo que deveria estranhar o saco com 470 mil do pastor, mas que, no fundo no fundo, não me espanta porque a mentira não me espanta mais. Meus amigos verdadeiros varrem as ruas e levantam olhares bondosos, dão receitas, apontam saídas – muito mais do que outros tantos conhecidos, todos chiques, maravilhosos, mas incapazes de se disporem a indicar um médico.

                  Os anos velhos se acumulam naquela pilha ali ao lado com a minha idade e eu não me espanto ao olhar para eles com o discernimento sábio – e muitas vezes solitário – que a vida me ensinou. O que de melhor aprendi com os anos, foi-me dado de graça pela vida – e muitas vezes foi a triste constatação de que quem tem muito poder, fica visceralmente viciada nele.

                  Assim, os melhores momentos envolvem quem amo e a luz sobre o mar, na praia absolutamente vazia do início das manhãs. Algo parecido com “as lágrimas que escorrem no meu rosto com a chuva”, do Blade Runner.

                  Se as pessoas vão apenas ver quem elas são, eu não sei. Sei que as vejo muito bem, com muita nitidez.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Eu? Errado?”

Queria ser capaz de vos contar as histórias maravilhosas de pessoas com quem tenho tido a honra de viver desde que nasci. São realmente histórias maravilhosas de pessoas maravilhosas, vividas num mundo que está a desaparecer: o mundo das cartas enviadas pelo correio; das conversas à lareira no inverno, e sentados numas cadeiras à porta de casa, no verão; das mensagens secretas que vão dentro do pão caseiro; dos homens que abandonam a família por alguns anos, para conseguir melhor vida para todos; dos homens ricos em terrenos e vacas; do dinheiro guardado debaixo do colchão; dos chouriços, presunto e queijo, guardados debaixo da cama; de ter uns sapatos apenas para ir à missa, aos enterros e ao médico. Dos tempos em que se deixava uma carne a cozinhar numa panela na lareira, enquanto se ia trabalhar no campo, e quando se voltava, trazia-se umas couves e umas batatas, que se juntavam na panela e dali a uns 10 minutos o almoço estava pronto.

Queria ser capaz, mas nem sei se vou ser capaz de fazer metade do que eles fizeram. Parecia tudo tão fácil que nós, os mais novos, nos achávamos capazes de fazer melhor mil vezes. O tanto que censurávamos, o tanto que nos ríamos, o tanto que nos julgávamos superiores.

Afinal, a vida passa, e por mais que te esforces, não consegues chegar nem aos calcanhares do que aquelas pessoas foram capazes. Talvez os consigas superar eventualmente, por alguns segundos, dias, meses até, talvez alcances mais conhecimento acadêmico, talvez mais oportunidades, talvez mais dinheiro até, mas jamais serás capaz de os superar. E tens de superar, saber que nunca os vais superar. Precisas trocar a necessidade infantil de tentar superá-los, pela capacidade de os honrar, de reconhecer suas capacidades, seus feitos, seus milagres, sua sabedoria, sua nobreza, e de alguma forma ser capaz de não estragar o que construíram. Não falo de “estragar” a construção sobre casas, terrenos, ou coisas, mas de manter o que construíram moralmente, o que não se vê, o que sustenta uma família, uma amizade, um negócio, o respeito, o amor, a admiração, a generosidade, a bondade, a equidade, a justiça, o apoio.

Parece tudo tão longe, parece tudo tão inacessível. Eu não liguei quando o policial me obrigou a pagar a multa por ultrapassar a alta velocidade, na frente de uma escola de crianças. Eu não liguei quando meu chefe me avisou que eu estava a faltar muito, a descumprir muitas normas e a atrasar projetos e trabalhos importantes. Eu não liguei quando a minha mulher ficava triste por eu não a tratar bem e por constantemente olhar, desejar, tratar melhor e me “enrolar”, com outras mulheres. Eu não liguei quando comecei a chegar ao final do mês e o dinheiro me faltar para pagar meus compromissos com a escola dos meus filhos, com a nossa casa, a nossa alimentação, a nossa saúde.

Sempre me via como capaz de resolver tudo. Talvez porque quando era novo, resolvia. Mas nessa época, eram problemas simples, eu era saudável, educado e respeitava meu pai e meus tios – por medo, mas respeitava. Mas na adolescência e em adulto jovem, quando comecei a ter um dinheiro fácil, nos esquemas que fazia com meus amigos e também porque nada me faltava em casa, não percebi que não aprendi o mais importante com o dinheiro – que quando não se ganha dinheiro com nosso suor, sacrifício, esforço, ele não tem qualquer valor, por isso se gasta facil e futilmente. Tentaram me avisar, mas eu não ouvia ninguém. Ainda hoje não ouço. E este terapeuta na prisão, diariamente me diz que eu preciso começar a ouvir, a aprender e a mudar, senão, não vou durar muito. Tenta me mostrar o percurso errado que faço há anos, tenta me mostrar onde me desviei, tenta me despertar alguma sanidade mental. Tenta ele, tenta minha mãe, meu pai, meus familiares. Tenho pena de todos, porque percebo que estão sofrendo muito em silêncio. Mas não me sinto culpado, não me sinto responsável. Eu gostava de ter vontade de me sentir essa pessoa que todos esperam de mim, mas não me apetece. Na minha cabeça só penso em coisas como: “porque aquela criança decidiu atravessar a rua naquele momento?”; “porque a minha namorada não quis transar comigo naquele dia e quando fugiu para a varanda, me fez sentir vontade de a empurrar?”; “porque as pessoas me irritam e depois se queixam que as agrido?”; “porque os meus amigos ainda não puderam me vir visitar, nem me devolveram o dinheiro que lhes emprestei?”

Será que vou ter de dar razão ao terapeuta, para poder sair mais cedo da prisão? Esta ideia de todos me considerarem errado me deixa muito irritado...

Ana Santos, professora, jornalista


Imagem: Francisco Trêpa


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