Muita pouca coisa tenta e consegue combinar um 3 em 1 e a noite de ontem tinha essa missão difícil: abrir com um show de Jota Veloso e Luciano Salvador Bahia, ir para a premiação do XVI Festival de Música da Rádio Educadora e explodir a ansiedade pra cereja do bolo – show autoral de Caetano e filhos. Tudo isso aconteceu – e ver samba de verdade no primeiro show, sem “baixa aqui ou levanta ali” foi sensacional. Fiz um programa com Jota e Menelaw Sete, trabalhei com Luciano na Escola de Teatro e conheço essa forma suavemente dedicada a buscar a qualidade, esteja onde estiver. Queria poder também não estar dividida como toda a plateia estava – o show principal ainda ia demorar.
A premiação do Festival da Educadora teve um erro crucial, na minha opinião: pode parecer casual, mas a entrega do Oscar é estudada para ser um espetáculo. As palavrinhas “e o premio vai para” fazem falta e um pedacinho da música também, podem acreditar. Na maior parte do tempo, não dava pra ouvir e entender o que os convidados falavam – honra feita à Secretária da Cultura que deu show, falou pausadamente e com boa dicção. Rita falava tão rápido que não consegui acompanhá-la. Quem estava lá em cima, fazia leitura lábio-facial pelo telão ou nada!
Frisson total. Caetanos e filhos. E aquela expectativa foi se acalmando porque o show foi um espetáculo de afetos. A plateia poderia ter enlouquecido, feito o que Caetano quisesse. Uma mulher na minha frente falava: “Ele quer que a gente sente, mas não é mole”... – pode não ter sido mole ficarmos todos quietinhos exercitando o prazer de ouvir, mas foi o que fizemos e valeu demais! Primeira constatação: Caetano tem filhos diferentes que herdaram dele uma timbragem de voz singular. E as 4 vozes se completavam em cena, mesmo quando alguém dava uma derrapadinha, mesmo quando o telão denunciou o tremor das mãos de um filho e depois foi lá e mostrou as mãos do pai igualmente e lindamente trêmulas.
Não foi um show com todas as músicas que esperaríamos ouvir num show de/com Caetano. Havia muita coisa nova. Mas o aval do afeto e o bom gosto e a simplicidade ao redor de tudo, apresentaram a qualidade dos filhos mais novos de maneira independente – e a extrema delicadeza de Moreno, aliada ao fato indiscutível de que o único músico que só tocava um instrumento ali, era exatamente o pai. Uma nova geração multifunção dando exemplo de que o novo e o velho mundo têm links. Por quê será que tem tanta gente que não vê uma coisa tão clara? E por quê tinha que ser um artista da força de Caetano a mostrar? -“Não sou religioso, mas tenho 2 filhos cristãos e um com raízes em religiões de matriz afro brasileira”. Quem, além de um grande artista, de alguém que mudou a forma como olhamos o Brasil poderia misturar, miscigenar evangélicos e o candomblé em uma frase de amor?
Tão, tão, tão suave, que o pessoal de cima quando se dispersava no bar, era trazido ao bom comportamento pela outra parte da arquibancada como em casa - pssiuuu. Sensacional.
Sensacional ver música do Olodum virar uma balada doce, ver a plateia delicadamente em silêncio, obedecendo à regência de Caetano, ouvir o vaticínio da genética se repetir ao ouvir aquelas vozes diferentes, mas advindas de um lugar que a gente conhece tão bem há tantos anos. Bis, volta, bis volta. E pela plateia, ainda estaríamos bisando até agora.
Saímos melhores do que entramos. Saímos com a palavra aceitação como uma prática a ser compartilhada. Se na família de Caetano deu tão certo, a gente não precisa matar os discordantes, basta aceitar as diferenças que temos, basta nos respeitarmos e pronto. Quem sabe o resto no Brasil, ao invés de se dividir faz um tributo à beleza de sermos quem somos, mesmo quando somos incompreensíveis...
Ana Ribeiro
Diretora de teatro, cinema e TV.
“Este show é um pretexto para estar mais tempo com os meus filhos”.
“É um show familiar, nascido da minha vontade de ser feliz”.
“Gostaria de passar aos meus filhos o que minha mãe passou para mim – e também meu pai: firmeza, harmonia, abertura. Meus pais eram assim.”
Caetano Veloso
Assistir Caetano Veloso sempre é um grande momento. Assistir em Salvador-Bahia junto com seus filhos, é mágico.
Ver um pai que mostra o caminho que fez toda a vida, que esse caminho o fez feliz e a todos para quem cantou. Ele os quer acompanhar nos primeiros passos para lhes mostrar os perigos, as alegrias e, principalmente, para viver com eles esse momento tão glorioso de os acompanhar no seu crescimento profissional, dando-lhes asas. E que asas. Têm um formato de espetáculo perfeito, têm público na Europa e no Brasil que os recebe de braços abertos e têm uma experiência profissional em conjunto com o pai que é apenas um dos melhores artistas do mundo no que faz.
Moreno tem o jeito baiano, as brincadeiras, a forma de demonstrar carinho com o pai. Zeca e Tom, publicamente mais formais e comportados. Tom dá um pezinho de dança no meio do show, Moreno também o faz no final e convida Caetano para o acompanhar, numa música que fez para o pai – “How Beautiful Could A Being Be”.
Caetano, continua incrível, um poço de energia, de cuidado, fazendo agradecimentos constantes aos filhos, à vida e às pessoas que foram e são importantes na sua vida e no seu coração. Uma capacidade de ocupar espaço pela sua grandeza e, também por causa dela, deixar o espaço para os mais novos. Um desapego e uma noção de família muito pura e especial. E sempre um exemplo de aceitação e convivência com as diferenças.
O público baiano adora intervir, colaborar e por isso num show calmo assim ficam inquietos porque não podem participar. Quando surge uma música que podem cantar junto, fica uma loucura, cantam em coro, os celulares se acendem e iluminam a concha. Parecem luzinhas de natal.
Caetano teve momentos em que sua cara parecia indicar que se sentia um homem com obra feita. Finalmente conseguiu um dos grandes desejos. Cantar com os 3 filhos. Um dos filhos, Zeca, foi o que demorou mais tempo para se dedicar a música. Mas também foi o filho que mais sucesso fez com uma música nova – “Todo Homem”- linda..
No final uma música em homenagem ao mestre de capoeira Môa do Katendê, porque Caetano é atencioso, é pai, é baiano, é educado, é humano e um ser humano diferenciado. Chamou Jota Veloso e Luciano Salvador para participarem. A família junta mais uma vez.
Agradecemos a gentileza, profissionalismo e cortesia de ingressos da íris Produções, Irailda e Lidi. Muito gratas
Ana Santos, professora e jornalista