Há uma coisa totalmente estéril que faz parte do filme, que é o filme. E a esterilidade é medida em silêncios, em reações incompatíveis, como sorrir ao sofrer, como bater para dar limites, como não reagir à morte, mas estar diante dela. É uma coisa destemida ou mesmo irresponsável. Os diálogos acompanham a esterilidade e são estranhos, muitas vezes apenas físicos, fisiológicos mesmo; outras tantas há diálogos inteiros de silêncios, de olhares.
Não é um filme comum e não pode ser visto com nosso olhar ocidentalizado que precisa reconhecer cores, ruas e movimento de gente. Os corpos nus estão em banhos coletivos e não são corpos da moda. Para além disso, ninguém pensa em modelos como os de hoje, que incluem corpos malhados, dentes assim, rostos preenchidos, maquiagem. É guerra e guerra e guerra – tudo é como é.
Há uma lentidão, uma escuridão, uma fuga de desejos e a obrigatoriedade de sonhar alguma coisa, mesmo que por um minuto, mesmo que fugazmente. É um filme cinza, com pessoas em perda – tudo é cinza.
A câmera, tantas vezes se misturou a multidão que eu, que cada vez mais adoro mais essa câmera quase confusa, que balança à nossa frente e que traz a ideia de que o cinema finalmente chegou à vida, chacoalhei com ela, vi com seus olhos e me perdi junto com ela, me sentindo só e com frio, em meio ao movimento.
Excelentes interpretações, mas dentro do clima estranho, de perda. Um filme para sair do cinema mais só, mais dentro de si mesmo, conjecturando afinal se estamos inventando guerras porque não as temos na vida real. As discussões no Brasil são perdidas e provocadas por pessoas medíocres que não vão deixar de ser medíocres por discutirem. Ali a dor esvazia e aqui as discussões nascem vazias de conteúdo, de inteligência e de solidariedade. Mas qual dos dois vazios é pior?
Para olhar seu deserto interior, um filme implacável. Imperdível.
ANA RIBEIRO, diretora de teatro, cinema e TV
“Final” da segunda guerra. Leningrado/Leninegrado (atual São Petersburgo). Uma das cidades mais belas do mundo e desejada pelos turistas “profissionais” que colecionam lugares – os prazeres do Século XXI. Em 1945, a cidade de Leningrado/Leninegrado, como tantas e tantas cidades, estavam destruídas. As pessoas, feridas física, psicológica, emocional e espiritualmente, tentavam como podiam, se restabelecer. Este filme, da Rússia mas que fala de tempos em que Leningrado/Leninegrado fazia parte da União Soviética, se inspira no livro “A guerra não tem rosto de mulher” de Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel. Um livro que é um documento histórico de muito valor. A guerra do ponto de vista das mulheres. O que cada mulher terá vivido, de acordo com as funções que ocupou. Porque cada mulher, cada pessoa tem um ponto de vista sobre o que viveu, como viveu e como lidou com esse sofrimento e dificuldades. No filme, elas até brigam, discordam e sobrevivem de formas diferentes porque sofreram coisas muito diferentes. Resta-lhes uma falta de afeto, de amor-próprio, de confiança em si, de dignidade e honra, que é dilacerante de assistir e pensar como foi com tantas mulheres. Como é com tantas outras em campos de refugiados.
Pense no que as mulheres no mundo ainda vivem, ainda sofrem, ainda são impedidas de fazer, ainda..., ainda..., ainda..., em quase todos os lugares do mundo e tente imaginar o que foi feito com elas na segunda guerra. Um objeto utilitário. Ações e comportamentos por vezes momentâneos, por vezes permanentes que provocaram danos eternos. Danos que passam de geração em geração, como os danos da escravatura, das ditaduras.
Você tem uma vida que pode até ser pequena, mas é sua. A guerra tira tudo, o que você tem, o que você é, os seus sonhos, suas forças. Quando você volta para a sua vida, nada existe. Nem você. Nem existe ninguém para dividir desabafos, dores. Você engole a sua dor e sofrimento e tenta seguir. Sem caminho, sem nada. Colando pedaços.
A reconstrução humana depois de uma guerra, depois de um trauma, é começar de um zero muito pequeno e frágil que pode zerar de novo e de novo, por vezes toda a vida. Os danos que ficaram em você podem provocar mal em outros. Uma engrenagem complexa. A vida no seu estado caótico.
Não deixe de ler o livro de Fiódor Dostoiévski, “Gente pobre”. Todos conhecemos os livros mais referidos deste monstro da literatura. Falo aqui deste livro por causa da pobreza exposta no filme. Os escritores russos descrevem a pobreza de uma forma única. Dilacerante. Como é o sofrimento da própria pobreza. Como muitos deles sofreram na pele, na carne, no osso. E a pobreza no frio consegue ser ainda mais terrível.
Mais um filme impressionante para a luta do Óscar de melhor filme estrangeiro. Como sempre digo, todos deveriam ser vencedores. Todos filmes importantes e necessários. Um ano incrível, uma colheita marcante.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/video/vi3961700121?playlistId=tt10199640&ref_=tt_ov_vi
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha
http://www.itaucinemas.com.br/filmes/
Circuito de Cinema Saladearte