Para os desavisados, que passam pela vida sem notar que precisamos começar a equacionar a aceitação e a inserção de todas as minorias e suas enriquecedoras diferenças, Se a Rua Beale falasse aponta mais uma vez para o fato de que nada explica, justifica ou pode compreender qualquer preconceito.
Se formos parar pra pensar a total ignorância e bestificação de um ser humano para que ele olhe diferenças de cores, na pele das pessoas ( o que aqui no Brasil e particularmente aqui na Bahia chega a ser ridículo porque nós somos cor de café com leite em todas as matizes possíveis com um alguém que aparece mais raramente com cor de chocolate ou de canela) e as qualifique por essas diferenças de tons, transformando-as em piores, inferiores, menores, percebemos porque o alvo do filme não precisava estar nos ignorantes e sim no amor e encantamento que apesar de toda a situação sentimos sem parar.
A forma como os olhares se cruzam, a suavidade como falam, os sorrisos, o sonho, a fantasia são a frente do filme – e isso é necessário. Estou mesmo cansada de assistir tripas e sangue em toda parte, em detrimento da inteligência e sensibilidade que insistimos em manter vivas em nós. Kiki Laine e Stephan James são química, amor e emoção, juntos.
Claro que a injustiça de os vermos serem separados por racismo fica como um espinho dentro de nós o filme inteiro, claro que sofrer preconceito poder fazer parte da vida de uma população inteira, claro que a gente ver isso num lugar como o Brasil e principalmente num lugar como a Bahia é insuportável e claro que o filme fixar o olhar no amor acima de tudo torna a anestesia imposta pelos jornais – que mostram o preconceito nosso de cada dia diluído em casos de polícia – uma coisa que incomoda ainda mais. Acima de toda a desumanização e desindividuação existente, aquele casal da Rua Beale continuou se amando e nós saímos do cinema sabendo que, ao final da pena – injusta claro - continuariam juntos.
Na vida real, se nos basearmos em Se a Rua Beale falasse, se nos inspirarmos, podemos impedir que este processo de viver o preconceito continue a existir. Porque é apenas uma questão de posicionamento social claro de todos nós. Os que ainda não perceberam que toda a diferença deve ser bem recebida por ser complementar a quem somos precisam ser conduzidos, estimulados a ver. Precisam de todos nós, portanto.
FILMAÇO. IMPERDÍVEL.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Primeiro, que filme lindo. Cores, detalhes, corpos bonitos, imagem lenta, narração. Garrafas de cerveja que eu nunca tinha visto. Inicialmente pensei que bebiam um liquido tóxico pelo formato das garrafas. Me fizeram lembrar os frascos que meu pai vendia de borato, de iodo. Levei um susto. Muito legal ver esses detalhes da vida dessa época e das dificuldades de viver em desvantagem. Eu não compreendo e lido muito mal com injustiças e quero entender para poder ajudar. Não podemos mais deixar que estas coisas se mantenham. Meus pais viveram no antigo Congo Belga, que agora se chama Zaire. Quando voltaram para Portugal e tiveram os 5 filhos, tínhamos dias de magia e muita felicidade quando no final da refeição, ainda na mesa, contavam histórias dessa época. Desde essa altura que ficamos com um fascínio pela África e, principalmente, aprendemos que as pessoas são todas iguais, sejam de que cor sejam. Sejam verdes, azuis, ricas, famosas ou de vida modesta. Isso não interessa. Sempre aprendemos que o que diferencia as pessoas é o caráter, a nobreza, os comportamentos que apresenta naquele momento. E isso fez muita diferença na minha vida. Ainda faz. Nunca vi as pessoas negras como inferiores. Que absurdo. Aliás, no mundo do esporte, da velocidade, agilidade, dança, expressividade, atividades de explosão, entre outras qualidades, as pessoas de pele negra são excepcionais. Excepcionais. Referências para nós, os limitados fisicamente a esses níveis e que treinamos e treinamos para sermos quase tão bons. Também em Portugal, junto dos amigos e algumas pessoas da família, adorávamos o verão porque ficávamos morenas. Quanto mais morenas melhor. Isso significava beleza, alegria, felicidade. A cor branca era e é sinal de doença, palidez, infelicidade e tristeza em época de verão. Acho que ainda é assim para muitas pessoas. Curioso né. Quando vim viver para Salvador levei um susto. E este filme é outro susto porque a injustiça é grande e dá uma sensação de impotência que talvez seja um dos piores sentimentos para se sentir em sociedade. Uns tudo podem e outros nada podem? Uns porque não são capazes de ser respeitáveis por si só, usam a forma mais vil, a de destruir a vida dos outros, para se destacarem? Quando isto vai parar? Quando as pessoas vão aprender que viemos para este mundo, viver esta vida, que é só UMA, para fazer coisas verdadeiramente importantes? Vamos levar para o caixão ou para a caixa de cinzas os apartamentos? Os carros? As contas bancárias? Não. Mas levaremos as mágoas e as atitudes injustas que cometemos com os outros. Podemos também levar a nobreza...é mais leve. Que tal?
Você vive já com as dificuldades que a vida coloca, mas em busca da felicidade vai com coragem sempre. Aí, por que alguns decidem, sua vida não pode ser como você luta e deseja. Você é acusado de alguma coisa inventada, você é discriminado, portas são fechadas, sua vida é travada. As injustiças são gestos simples que propagam seu veneno por uma vida inteira e invadem a pessoa e todos os que a amam. Felizes os que nunca foram atingidos. Se sintam especiais e abençoados.
Referência a James Baldwin no filme é sagrada. Será sempre, pela importância que teve e tem na caminhada por um mundo justo.
Ana Santos, professora e jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt7125860/
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