Todas as escolas deveriam exibir. Não as escolas da Bahia, nem apenas as escolas do Brasil. Também não apenas públicas ou privadas. Todas. No mundo inteiro. Primeiro porque a série é um documento histórico que pesquisou, entrevistou, filmou em países diferentes, levantou dados pelo mundo e esfregou culpas entre pobres, ricos e remediados. Mas, principalmente porque as pessoas do mundo precisam criar um nível de “inaceitação”, de inadequação absoluta para qualquer tipo de comércio que envolva pessoas. E também não estou falando de raças, apenas. Estou falando de pessoas.
A série, do Canal Curta, se divide em quatro períodos históricos e faz uma narrativa tão dedicada aos fatos que é impossível não sentir vergonha pela existência histórica do tráfico de gente – no início muçulmanos, indígenas, mas sobretudo africanos – entre nós durante tantos séculos – do V, até XIX, para sermos exatos.
O fato de que a televisão nos mostre com nitidez motivos de vergonha humana afirma que é preciso que haja limites para o lucro. Não se pode aceitar mais violações para que o lucro seja farto. Sem concessões. Não para escravidão, prostituição, abuso infantil, tráfico de órgãos, de mulheres. NÃO.
ROTAS DA ESCRAVIDÃO, com a habilidade de nos colocar friamente diante das nossas desumanidades e hipocrisias, acaba com a discussão de justo ou injusto e fortalece a ideia de que o mundo precisa de normas humanas. Vejam bem, não estou falando de leis; estou falando de que nós precisamos deixar claro que já se passaram séculos demais para assuntos como escravidão ainda fazerem parte de uma discussão. Um passo à frente, senhores. UM PASSO À FRENTE. O que tem de errado na cabeça de quem ainda acha que precisamos “discutir inferiores e superiores”, se estivermos falando de pessoas?
Um filme duro, claro, sem meias palavras. Apenas dados, depoimentos, fatos, mapas, estatísticas. Ninguém está mais perguntando se há quem discorde, tinha até graça. E isso precisa chegar também à posição da mulher e ao desmatamento no mundo, só pra começar. Não porque sejamos “bonzinhos”, mas porque é preciso que sobre um mundo minimamente civilizado para a próxima geração. MINIMAMENTE.
Houve escravidão porque havia demanda de produtos e oferta de mão de obra fácil de roubar durante muitos séculos. Pesquisem aí o café e a cana brasileiros ou o algodão americano. Pois bem: vamos nos afirmar um NUNCA MAIS. Quem tem coragem? Quem tem coragem? E não venham com o argumento sórdido de que “não adianta não fazer isso ou aquilo porque é assim que o mundo gira”; para corrupção, é um dos argumentos favoritos no Brasil, por exemplo.
Vamos nos afirmar NUNCA MAIS. O primeiro de muitos outros que precisam vir por aí.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV
Diretores: Daniel Cattier, Juan Gélas & Fanny Glissant
Coprodução: ARTE France, Compagnie des Phares et Balises, Kwassa films, RTBF, LX Filmes, RTP - Portugal, Inrap
1º Episódio - 476 - 1375: Além do Deserto
O primeiro episódio da série conta 700 anos de história e revela como as populações subsaarianas se tornaram, ao longo dos séculos, a principal “matéria-prima” do tráfico de escravos da história.
2º Episódio - 1375 - 1620: Por todo o Ouro do Mundo
A Europa descobriu a principal área de geração de riqueza do planeta: a África. Os primeiros a explorarem o continente foram os portugueses, que voltaram não só com o ouro da região, mas também com milhares de escravos.
3º Episódio - 1620-1789: Do Açúcar à Revolta
Século XVII: o Atlântico tornou-se o campo de batalha da guerra açucareira. Franceses, ingleses, holandeses e espanhóis lutavam pelo Caribe para cultivar cana-de-açúcar.
4º Episódio - 1789-1888: Novas Fronteiras da Escravidão
Em Londres, Paris e Washington, o movimento abolicionista ganhou força. As principais potências europeias aboliram o comércio transatlântico em 1807.
Uma série/seriado muito bem feito. Lindo, bem estruturado, com animações lindíssimas e de muito bom gosto. Diretor de animação, Olivier Patté. Guarde esse nome. Maravilhoso e talentoso artista. As partes do seriado/série animadas, são lindas.
A série/seriado é originalmente narrado em francês mas a versão que passa no Canal Curta, aqui no Brasil é em inglês. O narrador americano/inglês, voz grave e serena, ritmo, dicção. Perfeito, envolvente. Uma série/seriado muito, muito boa e muito, muito importante de ser vista por todos no mundo. Deveria ser documento de escolas para consulta e para ser assistido em aulas de história, geografia, economia, sociologia, etc.
Fico muito orgulhosa, enquanto portuguesa, que Portugal, através da sua televisão pública tenha tido a coragem e a humildade de co-produzir este seriado. Muito orgulhosa mesmo. Pela verdade, pela capacidade de um povo em aceitar a sua história, com as coisas edificantes e as que envergonham muito, para que possamos ser melhores no futuro. Saber o passado para nunca esquecer o que foi feito de errado, para corrigir e para nunca mais repetir.
Muito trabalho de investigação, pesquisa, durante no mínimo 5 anos, com especialistas como Catherine Coquery-Vidrovitch, historiadora, professora emérita da Universidade de Paris VIII como consultora histórica da série. Uma honra.
Obrigatório assistir para entender melhor de onde vem esta ideia de escravatura. Infelizmente nasceu bem antes dos portugueses a “utilizarem” e não se sabe quando terminará. O comércio, com suas trocas e valores de compra e venda, pelo menos desde 476 que utilizam a escravidão como “atividade” lucrativa. A procura do desenvolvimento econômico, do poder, cega os povos desde sempre. Hoje em dia, temos o que é chamado de “escravidão moderna”, com o número inacreditável de mais de 40 milhões de escravos. Sim, isso mesmo. Hoje em dia a escravidão permanece no mundo entre seres humanos que se dizem desenvolvidos e melhores do que os outros seres existentes no planeta.
A história precisa ser ensinada em todos os países de forma idêntica, sem omitir as vergonhas e apenas mostrar as honras e as vitórias. Isso divide os povos e nunca curará as feridas. O ser humano precisa de saber a história verdadeira de si e dos outros, sendo essa uma das melhores formas de unir todos e não dividir. Reconhecer as vergonhas, pedir desculpa, mostrar arrependimento e desacordo pelo que o nosso povo fez em determinado tempo, ajuda a apaziguar dores e mágoas que são de outros tempos, entre “outras” pessoas, mas que passam de geração em geração com as feridas abertas. E que as pessoas vêm em ti, por seres desse povo. Reconhecer o erro é o mínimo que podemos fazer quando sabemos que os nossos fizeram outros sofrer muito, demasiado, de formas desumanas. Por outro lado, quem herdou dores e mágoas, vendo esses gestos de reconhecimento do erro e de arrependimento, acalma o fervilhar constante de uma injustiça rude, inacreditável e inqualificável. Como se pode tomar a vida de outros seres humanos e ter controle absoluto sobre elas? Absoluto! Escravizar as pessoas? Tratar essas pessoas como coisas? Como e porque ensinamos que uns são melhores do que outros? Uns merecem mais do que outros? Ainda hoje na Bahia muitas pessoas caminham na rua porque não lhes era permitido caminhar nos passeios/calçadas. Ainda hoje pessoas não falam o que pensam – basta olhar os seus olhos, cheios de dor, de opinião, mas condicionados a uma aprendizagem de medo e de inferioridade de séculos. Nunca pensei aprender tanto de história como nestes anos que vivo no Brasil. Já chorei muito, já pedi muitas desculpas e peço sempre que posso, pelo que fizemos de errado no passado aqui e em outros lugares do mundo. Porque os seus olhares me chocam e me envergonham mesmo sem eu ter feito absolutamente nada. As pessoas me falam que na época era assim, que se não tivessem sido os portugueses, teriam sido outros povos. Mas, foram os portugueses. Foi o meu povo. Foi uma parte de mim. Vir ao Brasil em passeio ou em trabalho, não se vê nada disso. Mas estar aqui, anos, principalmente na Bahia, é um susto. Um choque. A dor, as feridas, o que foi destruído em tantas vidas – sonhos, sentimentos, desejos, honra, etc – está tremendamente vivo e pulsante. Em todo o lugar, em todos os olhares, em todos os comportamentos, gentilezas, agressividades. Na comida, nas casas, nos comportamentos, nas festas, no carnaval, nas celebrações, na roupa, na religião, no ar. No ar... Cai em cima de ti uma responsabilidade, uma culpa, uma necessidade de honrar o teu povo, que tanto respeitas e amas, mas ao mesmo tempo tem muito que precisas fazer para poder devolver pelo menos alguma justiça no meio de tanta, tanta, tanta injustiça. Fazer a tua parte.
Uma humanidade que considerou sempre a escravidão/escravatura como uma necessidade econômica, para onde vai? Que brinca às guerras...com seres humanos que não sabem para onde vão, que seus pais não sabem quando voltam nem se voltam, de repente. Separar famílias, matar por nada. De uma hora para a outra. A vida muda num instante. O que esse instante destrói, demora séculos ou a eternidade para curar.
É sempre bom aprendermos que o que todos fazem, se consideramos errado e fizer mal a alguém, podemos recusar fazê-lo. Não precisamos nem devemos fazer o que os outros fazem, só porque é assim. Porque é habitual. Questionemos sempre e recusemos o que não é certo. Acompanhar o rebanho, desejar o poder a qualquer custo, olhar para o lado, tem consequências que, podem levar séculos ou a eternidade a resolver...na melhor das hipóteses. Sem moralismos. Ter vindo viver para o Brasil me confrontou com uma realidade que desconhecia. Que desconhecia a profundidade. E que me afetou e chocou profundamente. Todos os dias tento consertar algo que esteja nas minhas possibilidades. Quero e tento eternamente poder ajudar. Quando estamos em outro olhar sobre a história dizemos: “- De novo essa história? Você tem de aprender a perdoar.” Mas quando algo errado foi feito, isso tem consequências. A pessoa que errou deve ser punida pelo que fez, reconhecer o erro, pedir perdão e ter comportamentos a partir desse momento que fomentem uma confiança que se constrói lenta mas consistente. Quem sofreu precisa disso tudo para poder fazer o luto e poder tentar renascer de forma lenta e consistente. Isto serve para um povo também. E não adianta outros dizerem que a pessoa se arrependeu e mudou. A pessoa precisa de dizer, mostrar. Tem e precisa ser ela. Precisa ser o povo.
Em nome do povo português, eu peço desculpa por tudo o que foi feito de abominável e que sei que passados séculos, a dor permanece igual. Penso que por vezes até parece que a dor está pior porque falta o reconhecimento público do erro e a mudança de comportamento do lado errado. Uma coisa que parece simples, mas que é determinante para se seguir em frente com possibilidades de verdadeira amizade e de países verdadeiramente irmãos.
Se é português e justo, prepare-se para chorar, para lamentar, para se envergonhar. Depois, faça algo que possa melhorar o passado, peça desculpas, perdão, o que conseguir. Isso fará muita diferença. Fará a diferença. E, é hora de fazer a diferença.
Ana Santos, professora, jornalista, portuguesa
Rotas de Escravidão no Canal Curta
Les Routes de L’Esclavage
https://vimeo.com/search?q=les+routes+de+l%27esclavage+3%2F4
IMPERDÍVEL!!!