Um filme estarrecedor e não pelos motivos que muita gente vai dar. É difícil de engolir que uma madrasta seduza o filho adolescente de seu marido. Mas pode acontecer. E o roteiro do filme constrói a situação: Um casamento monótono, nenhuma convivência anterior com o garoto, uma vida profissional onde você vê coisas que ninguém deveria ver no mundo, rotinas e nada, absolutamente nada de novo, pulsante e criativo na sua vida. Uma casa maravilhosa, muito espaço, natureza e mais nada. O sinônimo de sucesso e o tédio como recompensa. Não sei se eu seria capaz, mas acho possível.
Bom, este já seria um filme difícil de ver, a madrasta sentindo desejo pelo enteado e indo em busca do fato, do sexo. Mas o roteirista queria a perplexidade absoluta, o realismo absoluto.
Quantas pessoas traem e mentem de pés juntos? Não apenas traem, mas mentem? Não apenas traem e mentem, mas destroem quem teve a necessidade de apontar a traição? O filme muda de perspectiva o tempo inteiro, a história vai de um lado para o outro da vida e mostra a beleza morta de um deserto de emoções, as tentativas de preenchê-lo e o nada tomando conta de tudo.
Aí, o fato de acontecer no mundo civilizadíssimo da Dinamarca faz nossas ilusões civilizatórias caírem por terra porque a falta de piedade existe dentro de cada pessoa, independentemente do lugar onde ela vive. Mesmo. Na dureza de uma direção impecável, o menino se aproxima sensualmente da madrasta numa festinha, eles são vistos, ela termina, afasta o menino, ele se perde totalmente e ela mente, mente, nega, mente, faz drama, grita, esbofeteia o marido, mente, mente, mente. E se dá bem. A direção do filme sustenta a capacidade de sobrevivência de um canalha, como acontece na vida real. Sem pena.
E você vê o menino ir-se destruindo, pedindo a verdade e ela é impiedosa em cada negativa. Basta-lhe sobreviver à crise e seguir.
Conheço uma história assim. No final, todos se uniram para dizer que a pessoa que foi traída, a pessoa para quem se mentiu estava errada porque afinal “os homens são assim”. Como reagir ao que fazem os homens? Como reagir ao poder intrínseco? Uma mulher mais velha também tem o poder sobre um menino e diante disso, a pergunta que fica é se o poder autoriza tudo na nossa sociedade. Você sai do cinema perplexa, sem vontade de falar com ninguém, enojada com o uso do poder, com os interesses sociais prevalecendo à falta de coragem de erguer os olhos e admitir que errou. Uma vergonha. Um horror. E mentiras que querem sobreviver à verdade e podem sobreviver à verdade porque detém o poder. Quem vira a roda e mostra verdade é trucidado.
O pior, o mais estarrecedor é que eu olhei ao redor e a vida real estava lá, me olhando. Vocês têm que ver. Se suportarem ver.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Se gosta de filmes que falam de questões éticas, relações de poder, manipulação, dilemas morais e famílias fraturadas, deve assistir. Verá a vida por dentro, as entranhas em detalhe. Não é bonito. Infelizmente o filme não é ficção. A vida nunca é o que parece e é muito mais caótica do que aprendemos em crianças.
O que parece errado numa família bonita, rica, com sucesso profissional, com uma casa espetacular, cercada de uma floresta e um lago? Com todos os rituais de família perfeita? Jantares, festas de aniversário cheias de familiares e amigos, piqueniques junto ao lago...? Nada parece errado. Tudo parece perfeito. Você quase deseja uma vida igual. Quantas famílias você conhece assim? Um conselho. Continue a ver essas famílias assim. Não as queira ver mais de perto. Nem todas são tão perfeitas quando se olha melhor ou durante mais tempo. Mesmo na Dinamarca, onde há o menor índice de desigualdade social. Onde a qualidade de vida é muito elevada. Considerado um dos países menos corruptos e mais pacifistas. O mesmo país onde poderia ter nascido Nelson Rodrigues. Poderia. Foi onde nasceu Lars von Trier, Hans Christian Andersen, entre outros. Nem sempre o que os países parecem “por fora”, o são “por dentro”. Nem sempre a perfeição aparente das pessoas “por fora” significa que o mesmo acontece “por dentro”.
Interessante desenho do roteiro ao relacionar o livro de histórias que é lido às filhas gêmeas, com o nome do filme e com a personagem principal.
Alguns seres humanos satisfazem seus desejos e suas necessidades de poder sem pensar nem questionar regras, legalidade, moralidade, bem estar dos outros. Infelizes dos que se cruzam no seu caminho. Por que serão objetos de desejo e poder. Mais infelizes os que os enfrentam para manterem sua sanidade mental, procurar a justiça, a verdade e tentar manter um equilíbrio emocional e saudável para todos. Esses são dizimados. Excluídos do ambiente perfeito construído na família com mentiras de todas as cores e ações e comportamentos estratégicos de união familiar em sua volta. A perfeição. De repente, quem sofreu a ação, a traição, se torna o culpado e todos apontam o dedo. Todos entram no jogo para não serem excluídos também. E essa cobardia/covardia, ajuda os manipuladores. E tenta destruir os que enfrentam. E é aí que você, se for um dos que enfrentam, saberá a força que você tem e do que você é capaz, quando quase ninguém ou ninguém te apoiar mesmo sem saber por que não o faz. Julgo que as pessoas não fazem a mínima ideia do efeito que tem na vida das outras pessoas, o que elas não fazem, o que elas não apoiam, não defendem, não protegem, não cuidam, não querem saber. O poder funciona assim em todo o lado: na política, na vida social, profissional, familiar, etc. Você quer ver e ajudar ou vai ser dos que segue em frente e não quer saber, não se quer chatear? Você prefere seguir o “vício” do poder e destruir as outras pessoas só por que isso te dá prazer físico e/ou emocional? Ou você vai ser alguém que enfrenta as injustiças e a corrupção, seja em que lugar isso estiver? Por que muitas pessoas precisam da sua ajuda. Sem a sua ajuda muitas pessoas serão dizimadas injustamente. Pare de olhar para o lado. Os 3 seres humanos que venceram o prêmio Nobel da Economia de 2019, estudam e testam há mais de 20 anos as melhores formas de diminuir e erradicar a pobreza do mundo. Com isso ajudam na saúde, na felicidade, no bem estar das pessoas de todo o mundo. Dão a mão a quem não consegue sair das armadilhas criadas pelos poderosos. Vamos fazer a nossa parte? Mesmo que seja muito pequena, faça. Por favor. O mundo precisa parar de incentivar os comportamentos tóxicos na alimentação, nas relações humanas, financeiras, etc, etc, etc. Chega de esquecer que a inteligência é a capacidade de resolver problemas. Inteligência não é algo para ficar se mostrando, sendo vaidoso. É para se usar pelo bem da vida, e do mundo, para todos.
A trilha sonora/banda sonora de Jon Ekstrand é incrível e marca bem o ambiente dramático.
Se prepare para um grande filme, mas para sair de “rastos”. Esta é a vida que permitimos. Que tal fazer algo para melhorar tudo um pouco?
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8378126/
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha