Que filme bom! Esqueçam os mocinhos porque aqui só aparece o que o mundo colocou de mais velhaco dentro de cada personagem.
Se você é bom no que faz, mas perdeu a mão, bebe demais, ganha aquele jeito indelicado de bêbado e por causa disso vê todas as oportunidades caminharem pra vida das outras pessoas – que tem menos talento até do que você – o que fazer? O que fazer quando a sua casa reflete o desmazelo da sua vida, a sua gata fica doente e não há dinheiro para o veterinário, para o aluguel? Parte-se para pequenos desvios que ninguém nota – e depois de um tempo nem você. O bafo de bebida já é normal. Ok, você está sendo derrotado pelo sistema. Mas o seu talento para a escrita ali está. Aí alguém se interessa pela carta de um escritor famoso e a compra de você – hummm... tem um negócio aí...
Esse é o enredo de PODERIA ME PERDOAR? Um monte de gente velhaca vendendo e comprando cartas mais ou menos picantes de grandes autores. E uma escritora de talento forjando ideias, temas, termos, dedicatórias.
As atuações são perfeitas, combinadas, integradas entre Melissa McCarthy e Richard E. Grant, num drama tão grotesco que ganha ares de comédia muitas vezes.
Locação incrível, tudo muito bem escolhido. Você “sente o cheiro” da casa. E há uma parceria entre malandros que cai muito bem no filme, que aponta a bizarrice da situação inteira. Para vender cartas falsas ela é insuperável no mercado, mas ninguém pensa no real talento para a escrita, que é dela, lhe pertence.
Um roteiro tão bom, que foi indicado ao Oscar, num filme que aponta momentos de depressão e faz do que está na sarjeta, uma forma de humor cítrica. O Bug não viu no cinema, está aproveitando o sinal aberto do Telecine e aponta que vale demais a pena ver, mesmo que haja a perda por causa da tela da televisão.
Há uma dor que vai te acompanhar o filme inteiro e que permanece mesmo quando alguém ganha. É o típico filme onde todos acabam sofrendo as consequências de suas “espertezas” e perdas – coisa de vida real, já que o filme é baseado na história verdadeira de Lee Israel. Como eu disse no começo, ninguém ganha, ninguém é feliz e ninguém acaba melhor do que começou. Exatamente por isso, imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Hoje em dia, ser escritor é ser também palestrante, entertainer, super sociável, relacionar-se com a alta sociedade e muitas mais capacidades que nada têm a ver com o talento de escrever. Recordo Doris Lessing, Prêmio Nobel de Literatura, em 2007. Sempre me pareceu que disse o que queria e nunca se deixou asfixiar por essas obrigações de divertimento literárias. E seus livros são socialmente sensacionais. Um escritor devia ser o que escreve.
Uma escritora vai degradando a sua imagem e diminuindo as oportunidades profissionais, por ser rude, grosseira, recusar estar em situações sociais de promoção dos seus livros. Ama seu gato e só. Mas a situação financeira degrada muito e ela se revolta com a falta de oportunidades e fica ainda mais rude e desagradável. A frieza e desinteresse das livrarias e empresários de todo o mundo literário quando o escritor não vende ou quando deixa de criar ou ainda quando se recusa a fazer parte do sistema que promove livros e vende escritores é cruel. Uma história tão verdadeira quanto inacreditável que vira livro e vira filme e além disso fez sucesso. Incrível a vida né? Uma escritora antipática, solitária, antissocial, com um humor cáustico, começa a ter problemas em sobreviver e pagar as suas contas. Tenta vender a sua imagem degradada, tenta que confiem no seu talento mas não colabora muito com seus comportamentos. Vai ficando desesperada até descobrir uma forma de pagar as suas contas. Uma forma criativa, original, mas ilegal e perigosa. Desconfiada e individualista, afasta ainda mais as pessoas e as possibilidades de se recompor social e profissionalmente. Acaba por pagar caro tudo o que fez e o fato de não acreditar em ninguém. Tão talentosa e criativa quanto destemida e sem medo de regras e leis. Um dia pode ser descoberta...
É interessante como os sistemas acusam com muita exatidão as ilegalidades, quando essas ilegalidades não lhes são úteis. Ou quando são muito atuais e visíveis. Passadas gerações, as mentiras e fraudes podem se tornar valiosas e render bom dinheiro. Também é interessante ver que um bom escritor pode ser engolido pelo sistema, mas um escritor fraco mas muito simpático e sociável e integrado nesse sistema, pode se tornar um sucesso de vendas. O lado injusto da vida em pleno vapor...
Um retrato do mundo literário sobrevivente e menos visível. A degradação de hábitos e vida social é tão bem retratado no filme que dá vontade de tapar o nariz algumas vezes, imaginando o mau cheiro de falta de limpeza e cuidado do seu modo de vida.
Se tem curiosidade pela vida dos escritores menos famosos, veja o filme. É chocante.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt4595882/
Diretor: Marielle Heller
Roteiristas: Nicole Holofcener, Jeff Whitty
Elenco: Melissa McCarthy, Richard E. Grant, Dolly Wells
Sinopse: Uma escritora de biografias de celebridades não consegue mais ser publicada pois seu estilo saiu de moda. Para voltar às graças do público, ela começa a falsificar cartas de famosos.
Telecine (atualmente gratuito)
https://www.telecineplay.com.br/programacao
Circuito de Cinema Saladearte
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha