Há uma coisa nos filmes que temos visto e que é importante apontar: cada vez mais falamos claramente de que há bens que não podem, estão proibidos de serem tocados por quaisquer palpiteiros de plantão aqui e no mundo; um desses bens é a liberdade. Os atordoados acreditam que com liberdade nós, mulheres, vamos nos prostituir, abortar, rasgar a roupa e transitar nuas pela rua e que cabe a eles, homens, racionais, aptos de nascença, a função de nos apontarem o caminho do bem, da moral e dos bons costumes. Repararam que os nomes bem, moral e bons costumes andam querendo trafegar por demais os caminhos do Brasil também? É porque o País disfarça, disfarça, mas é machista e cheio de preconceitos idiotas e inconcebíveis.
No filme, a tal moral religiosa e os bons costumes querem, apontam, desejam e obrigam o uso da burca, enquanto que meninas universitárias (OH! Universitárias aqui e lá também!) ousam desobedecer à regra geral, fazendo um desfile de moda dentro da escola, que vira uma carnificina.
O spoiler é necessário porque não podemos, não devemos e não queremos nos enveredar pelos caminhos facebookianos “da cura pela moral”, através da ameaça de linchamentos online. Não me interessa a religião de ninguém, desde que não se interessem pela minha e me deixem em paz para exercer a minha fé e meus inúmeros e cada vez mais frequentes momentos de falta de fé na humanidade. Mas me chama a atenção que, de degrau em degrau, podemos descer para ferocidade do radicalismo religioso, já que no Rio de Janeiro existem os chamados “traficantes de Deus” – traduzindo – traficantes evangélicos que “moralizam as áreas” onde existem candomblés. Vale um emoji azulado de boquinha aberta? Vale. É como uma “burca tropical”, onde uma religião tem a audácia de se achar superior às outras e destruir. Não moralizar, destruir, ser impiedoso. E destruir não é coisa de Deus em nenhuma religião conhecida.
No filme, as meninas resistem, reagem e mesmo perdendo contra armas, tiros e homens ferozes e estúpidos, no final a sensação é de que as mulheres ganharão porque nunca desistirão, mesmo que algumas usem “burcas mentais”. Aqui no Brasil, eu faço a minha parte e torço, quero e convido todas as mulheres a fazerem a sua parte também. Porque não nasceu homem que tenha mais juízo do que eu – não preciso deles para pensar autonomamente. E se alguma mulher pensa que precisa, ela é quem precisa de ajuda, acredite!
Um filme de explosões de interpretação lindas e imperdíveis com atrizes que conseguem nos passar a força que uma mulher precisa ter no meio de “moral e bons costumes” primitivos e inaceitáveis. Um desfile tosco, com roupas de bom gosto, mas nitidamente costuradas de modo amador, mas que nos parecem um desfile italiano de tanto que queremos que aconteça. Trilha incrível, mulheres incríveis, cenas incríveis. Para mulheres, obrigatório. Para os homens que já entenderam quem nós somos, vale ir e nos ver em ação – é quase como Charlies Angels fora da ficção. Para as pessoas a favor da “moral e bons costumes”... façam o que quiserem. Vocês atrapalham a evolução do mundo mesmo. Porque moral não é isso. Perguntem a Deus – se encontrarem com ele, claro.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme obrigatório para todos os seres humanos da terra, para as mulheres e para quem deseja contribuir de alguma forma para que as mulheres possam ter vidas mais felizes e justas. Já é hora, não? Não é possível que no século XXI os seres humanos ainda considerem que a mulher é inferior, que tem roupas que não pode usar, que existem coisas que não pode fazer, etc. Como podemos pensar que temos o direito de opinar sobre a vida e as decisões de outras pessoas? Que talento especial nos foi dado para que sejamos melhores e mais poderosos para decidir e impedir seja o que for aos outros? E com que direito eu posso considerar o corpo de outra pessoa como meu, ou que eu posso usar e fazer o que eu tiver vontade? E para piorar, como eu tenho o direito de matar quem tem opinião diferente da minha?
Pensar que são também as mulheres que continuam a educar os filhos e filhas para que tudo isto de errado se mantenha é tremendo. Fazer e ensinar exatamente como fomos ensinados precisa ser questionado por cada um de nós. Sem nenhum desrespeito pelos que nos ensinaram e pelo que aprendemos. Mas neste momento atual, a forma como fui ensinado resulta? Ou necessita de adaptação? De reflexão? De melhoria? Senão como o mundo melhora? Nunca... Sempre voltamos ao mesmo lugar. É urgente pensar nisso. Urgente.
Assistir ao talento de pessoas que nunca poderá ser desenvolvido só porque vivem em lugares que não permitem, com pessoas que apenas não querem e sem qualquer tipo de apoio seguro, é doloroso de ver e de saber que é a realidade de muitas pessoas – principalmente de muitas mulheres.
Incrível a coragem de Mounia Meddour para fazer um filme como este. Mesmo fantástico e incrível. Uma referência. Trilha/ banda sonora maravilhosa. Atores e atrizes lindos e talentosos. Sem vaidades. Sem pose. Atuações tocantes. As cenas das mulheres fazendo depilação com “caramelo”, me fez lembrar de mais um maravilhoso filme. Um filme do Líbano – “Caramel”. Não percam se puderem.
Um filme que é um tapa na cara da sociedade. Na cara de todos que permitimos que estas coisas possam acontecer.
Ana Santos, professora e jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt9522080/
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